A diferença entre o remédio e o veneno muitas vezes está na dose, diz o ditado. No caso da cafeína, pode estar também na idade de quem a consome. Enquanto em indivíduos adultos a substância parece proteger o cérebro de danos causados pelo estresse, que podem desencadear quadros depressivos, na vida intrauterina, pode atrapalhar o desenvolvimento cerebral e representar um fator de risco para doenças como epilepsia.
As conclusões são de estudos feitos com camundongos. A pesquisa coordenada há cerca de 15 anos por Rodrigo Cunha, da Universidade de Coimbra, em Portugal, teve como objetivo a investigação de como a cafeína pode prevenir o desenvolvimento de depressão, doença que afeta cerca de 15% da população e representa a primeira causa de incapacitação segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O grupo, que envolve colaboradores da Alemanha, Estados Unidos e Brasil, sujeitou ao longo de três semanas dois grupos de camundongos a situações de estresse crônico e imprevisível. Um dos grupos começou a receber duas semanas antes do experimento cafeína na água de beber. Testes mostraram que a concentração da substância encontrada na corrente sanguínea dos animais era equivalente à de um humano adulto que consome entre duas e três xícaras de café por dia.
"Tentamos reproduzir no modelo animal aquilo que todos nós humanos sentimos naquele momento da vida em que tudo vai mal. O carro quebra, perde-se o emprego, termina-se um relacionamento amoroso, descobre-se que um amigo tem câncer. Tudo é uma desgraça e, muitas vezes, esse conjunto de situações dá origem a um quadro depressivo", conta Cunha em entrevista à Agência Fapesp.
Os resultados mais recentes da pesquisa foram divulgados em maio deste ano na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences. Na avaliação do pesquisador português, os achados corroboram o que já havia sido demonstrado em estudos epidemiológicos com humanos.
"Um deles acompanhou ao longo de vários anos mais de 50 mil enfermeiras no Havaí, uma ilha onde todos têm estilo de vida e alimentação muito semelhante. Concluiu-se que aquelas que consumiam cafeína apresentaram menor necessidade de ajuda do ponto de vista psiquiátrico", conta Rodrigo Cunha.
O outro lado
Já no trabalho do Institut de Neurosciences des Systèmes da universidade Aix-Marseille Université, na França, foram avaliados os efeitos do consumo da cafeína durante a gestação e a lactação em camundongos.
Também nesse caso, as fêmeas de camundongo foram habituadas a ingerir cafeína na água, em concentrações equivalentes a duas ou três xícaras de café por dia. Depois era feito o cruzamento e mantida a oferta de cafeína durante a gestação e o período de lactação.
Os resultados foram publicados em 2013 na revista Science Translational Medicine. "Observamos que a cafeína causa um atraso na migração para o hipocampo [região cerebral relacionada com memória e percepção espacial] de um grupo específico de neurônios gabaérgicos [que secretam ácido gama-aminobutírico]. Eles atingem o alvo, mas com um atraso de vários dias. Isso atrapalha o processo de construção do cérebro e causa um desequilíbrio", explica Christophe Bernard, coordenador da pesquisa francesa, à Agência Fapesp.
O pesquisador defende a necessidade de profissionais de saúde investigarem o consumo materno de cafeína durante a gestação quando atenderem, em hospitais, crianças com crises convulsivas. "Dessa forma, poderíamos tentar ver se há também em humanos uma correlação entre consumo de cafeína e aumento na probabilidade de ter epilepsia", diz Bernard.
Limite de segurança
Presente não apenas no café como também em diversos tipos de chá, refrigerantes, chocolates e bebidas energéticas, a cafeína é de longe a substância psicoativa mais consumida no mundo e não há consenso sobre qual seria o limite diário de segurança.
Segundo relatório publicado em maio pelo comitê científico da European Food Safety Authority, o consumo de até 400 mg ao dia (cerca de 4 xícaras de café) por indivíduos adultos com em média 70 kg e que não estejam gestantes não representaria riscos significativos de saúde. Para mulheres grávidas ou lactantes, o valor supostamente seguro seria de 200 mg ao dia.
Porém, Christophe Bernard defende a necessidade de realizar estudos clínicos que confirmem se a quantidade de 200 mg ao dia é de fato segura para o desenvolvimento cerebral durante a gestação ou se pode representar um fator de risco para o desenvolvimento de patologias na vida adulta.
"No trabalho de 2013, avaliamos apenas o hipocampo. Agora estamos olhando o cérebro mais globalmente e vendo que outras regiões, como o córtex, também são afetadas, pelo menos em camundongos. Em um modelo animal de Alzheimer, estamos investigando se o consumo de cafeína na gestação pode facilitar de alguma forma o desenvolvimento da doença", completa o cientista.
(com Agência Fapesp)
BEM-ESTAR
Cafeína: remédio ou veneno?
Esse nutriente pode ser um estimulante cerebral, e ao mesmo tempo, um perigo para os bebês durante a gestação
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