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Sociedade Brasileira de Pediatria está preocupada com a 'dramatização' da transexualidade

A entidade médica emitiu um relatório sobre a disforia de gênero nas crianças


postado em 27/09/2017 10:52

"A falta de orientação adequada pode banalizar e prejudicar muita gente", alerta Luciana Rodrigues Silva, presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (foto: Pixabay)
Os critérios para diagnóstico de crianças com disforia de gênero – transtorno caracterizado pela desconformidade entre o sexo biológico e a identidade de gênero – fazem parte de um documento científico divulgado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). O texto Disforia de Gênero, produzido pelo departamento científico de Adolescência da entidade, traz uma atualização sobre o tema e, segundo a SBP, tem como objetivo assegurar o correto atendimento e encaminhamento dos pacientes.

Segundo Luciana Rodrigues Silva, presidente da SBP, os médicos estão preocupados com a forma sensacionalista que essa temática tem sido tratada recentemente pela mídia. Ela ressalta a complexidade do transtorno, cujo diagnóstico definitivo depende do envolvimento de uma equipe multidisciplinar e alerta os profissionais e as famílias para o risco de decisões intempestivas e para o uso indevido de medicamentos, como o emprego precoce de hormônios sem a devida orientação clínica. "Esse assunto não pode ser visto como um fenômeno de moda. É necessário extrema cautela e zelo, pois há o risco de consequências negativas decorrentes de ações impensadas", comenta a especialista.

Na visão de Luciana Silva, o fato da disforia de gênero estar sendo tratado na novela A Força do Querer, da Rede Globo, possui um aspecto positivo, que é o de levar a sociedade a refletir sobre questões que, muitas vezes, são tabus no ambiente familiar. Por outro lado, na opinião da médica, quando a mesma novela traz uma personagem adquirindo hormônio na academia, representa um comportamento muito perigoso de automedicação e de compra ilícita, sem qualquer orientação médica.

"A falta de orientação adequada pode banalizar e prejudicar muita gente, que podem tomar como verdades fatos que não seguem os processos científicos e ainda não observar a época adequada para serem indicados ou a falta de equipe multidisciplinar para o acompanhamento", afirma a médica. Conforme Luciana, o documento da SBP ajuda a preencher essa lacuna e deve ser de leitura obrigatória para pediatras e outros interessados no tema.

Identidade

Segundo o relatório da Sociedade Brasileira de Pediatria, é impossível prever se uma criança com sinais de desconformidade entre o sexo biológico e a identidade de gênero persistirá com esse problema na adolescência e na vida adulta. Pesquisas mostram que cerca de 90% das crianças voltam a ficar satisfeitas com o gênero biológico próximo à adolescência. Apenas em alguns indivíduos – chamados transgêneros ou transexuais –, porém, permanece a percepção de incongruência entre o sexo biológico (características genitais presentes no nascimento) e a identidade de gênero.

O documento mostra que, por volta do segundo ano de vida, as crianças já conseguem se identificar como meninos ou meninas e apresentam brincadeiras relacionadas ao gênero. Entre os dois e três anos, no entanto, é que surge a construção da identidade de gênero que, segundo o texto, é uma experiência pessoal e profunda que abarca aspectos emocionais, psíquicos, culturais e sociais. Entre os 6 e 7 anos, as crianças passam a ter consciência do próprio gênero.

Na opinião do médico Cresio Alves, do departamento científico de Endocrinologia da SBP,  a disforia de gênero é revestida de inúmeros preconceitos, os quais invariavelmente afetam e interferem negativamente na vida das crianças e adolescentes. "É fundamental promover o acolhimento integral dos pacientes e seus familiares na diversidade. Por isso a SBP se voltou para este tema", comenta o especialista.

Acompanhamento

"Cada caso que se apresenta é único e, por isso, os pediatras não devem fazer indicações de condutas sozinhos. É necessário acompanhamento por equipe experiente, incluindo pediatra, psicólogo, psiquiatra, endocrinologista, assistente social, cirurgião, educador, enfermeiro e fonoaudiólogo. O pediatra deve ter tranquilidade para ouvir as questões e apoiar o paciente de modo individualizado", afirma Alda Elizabeth, do departamento científico de Adolescência da SBP.

O trabalho aponta a importância da aceitação de gêneros variantes e a construção de um suporte social para saúde e o bem-estar para reduzir o estresse nesses casos. De modo geral, o tratamento se baseia em psicoterapia, tratamento hormonal – somente em casos em que há indicação médica –, e intervenção cirúrgica, em casos específicos e após a maioridade do paciente.

Parecer do conselho

Em 2013, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também se manifestou sobre o assunto. Diagnosticar transtornos de identidade de gênero é uma atribuição médica de elevada responsabilidade que depende da atuação eficaz de qualificada equipe multidisciplinar. Por meio do Parecer nº 8, de 2013, o CFM orienta a conduta a ser adotada no tratamento com terapia hormonal para travestis e transexuais desde a infância até a fase adulta.

A procura pela transexualização demandou do Ministério da Saúde a regulamentação desse processo e a instituição de unidades de atendimento especializadas no Sistema Único de Saúde (SUS).

Apesar da disforia de gênero ser mais presente na idade adulta, o parecer do CFM orienta que, quando o transtorno for confirmado por atender completamente os critérios diagnósticos do transexualismo, o tratamento hormonal deve ser iniciado na fase pré-púbere para supressão da puberdade do sexo de nascimento.

Caso a disforia persista até os 16 anos, o Conselho Federal de Medicina recomenda que a puberdade do gênero desejado seja, a partir de então, gradativamente induzida conforme protocolos detalhados no Parecer nº 8/13. Ressaltando que os pacientes devem ser informados até um nível adequado de compreensão sobre os riscos do tratamento de cada estágio terapêutico para que o consentimento seja válido.

Conforme o CFM, a indisponibilidade de tratamento hormonal para transtornos de identidade de gênero pode ser questionada tanto ética quanto legalmente, cabendo salientar que pré-adolescentes e adolescentes precisam também do consentimento dos pais. O conselho lembra que o médico também pode recusar o procedimento por objeção de consciência.

No SUS

Atualmente, existem no Brasil, na rede pública de saúde – SUS –, serviços ambulatoriais especializados destinados ao atendimento de travestis e transexuais no processo transexualizador. Estes serviços devem oferecer acolhimento e acesso com respeito aos serviços, desde o uso do nome social, passando pelo acesso à hormonioterapia, até a cirurgia de adequação do corpo biológico à identidade de gênero e social. Além disso, no campo ambulatorial, inclui-se terapia hormonal e acompanhamento dos usuários em consultas e no pré e pós-operatório.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, entre 2008 e 2016, foram realizados 349 procedimentos hospitalares e 13.863 procedimentos ambulatoriais relacionados ao processo transexualizador. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Para procedimentos cirúrgicos, a idade mínima é de 21 anos. Após a cirurgia, deve ser realizado um ano de acompanhamento pós-cirúrgico.

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