Companheiro fiel desde que foi domesticado, o cachorro tem seguido o Homo sapiens em sua jornada ao redor do globo. E foi assim que chegou às Américas no fim da Era do Gelo, atravessando o Estreito de Bering (entre a Sibéria, na Rússia, e o Alaska, nos Estados Unidos) por volta de nove mil anos atrás. A partir da América do Norte, ele se espalhou pelo continente, alcançando todos os cantos, inclusive o Brasil. Porém, com a colonização europeia, a partir do século XV, os cães nativos desapareceram, deixando pouca herança genética nas populações atuais. Uma delas, aliás, não é nada benéfica: o tumor venéreo transmissível (TVT).
Esse é o resumo da história dos cães nas Américas, reconstituída por um grupo de pesquisadores liderados pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O resultado do estudo foi publicado na revista científica Science e tem como base o sequenciamento genético de 71 fósseis de cães americanos e siberianos, além do DNA mitocondrial (da linhagem da mãe) de 145 animais modernos e antigos, contidos em um banco de dados internacional.
De acordo com a pesquisa, os cães nativos das Américas não eram parentes dos lobos do norte do continente, como muitos trabalhos defendem, mas tinham ascendência direta dos cachorros siberianos. O fato evidencia o movimento migratório da espécie, acompanhando as ondas de deslocamento humanas pelo continente. "Nosso estudo confirma que os cães americanos originaram na Sibéria e atravessaram o Estreito de Bering durante as primeiras ondas de migrações do homem para o continente", comenta a arqueóloga Angela Perri, da Universidade de Durham e co-autora do estudo, em comunicado enviado à imprensa.
A parceria entre os nativos americanos e os cães ficou evidente com a árvore filogenética construída pelos cientistas a partir dos genomas dos animais. Ela mostrou que os cachorros que habitavam o continente antes do contato com o colonizador europeu descendiam de populações caninas da ilha Zhokhov, na Sibéria Oriental. Além disso, análises da taxa de mutação de moléculas (técnica usada para deduzir o tempo de divergência entre espécies) sugerem que todos os nativos compartilhavam um ancestral que viveu entre 16 mil e 13 mil anos atrás. Este, por sua vez, também se separou da linhagem dos cães de Zhokhov mil anos antes. Segundo os pesquisadores, esses períodos coincidem com as primeiras migrações para as Américas.
Esses cães conviveram com populações humanas de nativos americanos durante milênios. Então, os europeus chegaram. Primeiro os espanhóis, depois os portugueses. Rapidamente, os descendentes dos cachorros siberianos desapareceram, deixando um único vestígio, um câncer venéreo transmissível. "Algo muito catastrófico deve ter acontecido, e é muito provável que tenha associação com a colonização. O desaparecimento quase total provavelmente é uma combinação de efeitos como doenças, perseguição cultural e mudanças biológicas", explica Laurent Frantz, pesquisador da Universidade de Oxford, um dos autores da pesquisa, no mesmo comunicado. "Porém, ainda não temos evidências para explicar o desaparecimento súbito dos cães", admite o especialista.
Apesar de dizimados, os cães nativos americanos também deixaram a marca do tumor venéreo TVT nos animais europeus. Segundo o artigo publicado na Science, esse cancro teve origem nas células de um único cachorro, chamado "cão fundador do TVT", que viveu há milhares de anos. Esse animal era próximo geneticamente dos que viviam nas Américas antes da colonização. Provavelmente, devido aos inúmeros cruzamentos, ele foi transmitido para os cachorros da Europa e, hoje, é o último vestígio da população que se aventurou pelo Estreito de Bering mais de 10 mil anos atrás para fazer o que sempre fez: ficar ao lado do "melhor amigo".
CIÊNCIA
Cães se espalharam pelas Américas junto com os humanos
Colonização europeia contribuiu com o desaparecimento dos animais originais
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