Mesmo no inverno, o termômetro insiste em marcar 40 graus. Se tem uma coisa que todo mundo sabe é que faz calor em Cuiabá. A capital do Mato Grosso, localizada no coração do Brasil, é um caldeirão. Caldeirão efervescente de culturas. Não poderia ser diferente em um estado que tem Cerrado, Pantanal e Amazônia como biomas. E Cuiabá reflete exatamente essa riqueza de ingredientes e produtos.
A história da cidade começa em 1673, com a chegada dos primeiros bandeirantes. Cuiabá ficou adormecida no tempo até 1719, quando se descobre ouro no rio Coxipó. Foi, então, estabelecido o Arraial Da Forquilha. As lavras, no entanto, eram pequenas. E com pouco ouro, há um novo abandono da região, que vai sofrer diversas transformações urbanas e sociais até tornar-se capital com a criação do estado do Mato Grosso em 1977.
Tendo como vizinha a Chapada dos Guimarães - são apenas 50 quilômetros até a entrada do Parque -, durante muito tempo Cuiabá serviu apenas como ponto de passagem para aqueles que iam atrás de belezas naturais como a cachoeira Véu de Noiva e o Poço das Antas. Também foi dormitório para quem tinha como destino o Pantanal. Mas a capital mato-grossense tem uma vida particular e pulsante, incluindo aí uma gastronomia marcada por diversas influências, que vão desde a sírio-libanesa à africana.
Terra de etnias como os Bororo, Guató, Kayapó e Terena, a cidade também se orgulha de manter viva suas tradições indígenas. É só dar uma volta pelo Mercado Municipal Antônio Moyses Nadaf, mais conhecido como Mercado do Porto, localizado no bairro de mesmo nome. Por ali se encontra de tudo um pouco: frutas, verduras, hortaliças, temperos, conservas de pequi, carnes e peixes. Muito peixe. Resquícios de uma alimentação nativa.
Uma aula de gastronomia no Mercado
Chacara, pintado, pacu, piraputanga, piranha e matrinxã. No Mercado é possível achar tanto peixes dos rios pantaneiros quanto amazônicos, como o caparari, que pode chegar a 1,30 metros de comprimento e 35 quilos. Por ali, os vendedores preparam o ingrediente conforme o gosto do freguês.
É também impossível não falar da relação íntima do mato-grossense com a carne bovina. O estado é o maior produtor de gado do país com 34,2 milhões de cabeças, ou seja, 14,6% do total nacional, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mato Grosso tem mais de 9 cabeças por habitante. Além da carne fresca, também estão expostas carnes secas, muito utilizadas na comida das comitivas que transportam o rebanho de um lado a outro do Pantanal.
Outra coisa que se tem aos montes são as farinhas. A mais famosa é a de Poxoréu, preparada no município de mesmo nome, e que lembra um biju, devido a textura mais grossa e granulada. Por ali, também é possível experimentar o pichéu, que faz a cabeça da criançada. É uma farofinha preparada com milho de pipoca tostada, canela e açúcar, vendida em pequenos cones.
Na parte de hortifrutis, as bananas imperam. As frutas, bem passadas, são as preferidas dos moradores, que muitas vezes as enrolam em jornal e deixam no forno para chegar ao grau de maturidade máximo. Banana é indispensável na culinária local, assim como as pimentas. Na banca de seu Jailson da Silva tem 23 variedades, entre elas a de bode, uma das preferidas do cuiabano.
Bolo de arroz na lenha
Um portãozinho pequeno que vai dar em um corredor estreito. A plaquinha vermelha na porta indica "Dona Eulália e família". O lugar, no bairro da Lixeira, existe desde 1958 e é especializado em vender bolinho de arroz, feito com sobras de arroz branco triturado, leite, mandioca, manteiga, coco, canela e açúcar. Eles são assados no forno a lenha. "Com o passar dos anos, passamos a fazer também chipa e bolo de queijo", explica o bisneto da fundadora Gabriel Cândido. A casa funciona às terças, quintas, sábados e domingos e atende cerca de 2 mil pessoas por dia. Para acompanhar a merenda, há uma mesa com café, chocolate quente e chá mate. "Tchá co’bolo" virou uma expressão cuiabana para descrever a experiência de comer o bolinho de arroz com mate na casa de Dona Eulália.
Bulixo no Arsenal
Para o mato-grossense, bulixo quer dizer um pequeno comércio, que vende de tudo. Pode significar também uma feira de rua. Todas às quintas, acontece no prédio do Sesc Arsenal, no bairro do Porto, uma feira que reúne produtores familiares, artesãos e cozinheiros que trazem um pouco da cultura do estado para o imóvel, inaugurado em 1819 e que um dia funcionou como Arsenal de Guerra. Nos corredores, banquinhas de doces dividem espaço com senhoras empenhadas em mexer panelas repletas de comidas regionais, como o maria izabel, uma mistura de arroz com carne-seca, que lembra o carreteiro, mas que por ali é acompanhado de banana. Dona Deise Pedroso marca ponto no Bulixo há 18 anos. "Trago as receitas da minha família", diz ela, que também prepara o feijão empamonado, uma mistura de feijão e farinha que resulta em um creme pastoso.
Tombado pelo IPHAN, o Sesc Arsenal conta com um jardim interno com choperia, sorveteria, além de teatro, cinema, galeria e biblioteca. Ao fundo, uma loja traz diversas obras de artistas locais e de artes indígenas de diversas etnias, como Matula Kalapa e Cajii.
Os sabores do Mato Grosso com classe
Eleita diversas vezes como a melhor chef do Centro-Oeste, Ariani Malouf começou sua história no bufê da mãe, Leila Malouf, que existe desde 1993. Depois de estudar na Le Cordon Bleu, em Paris, e passar por cozinhas na França, Itália e Alemanha, a chef voltou para sua terra natal e abriu o badalado Mahalo, em 2006. O restaurante tem uma base francesa, mas traz receitas e ingredientes de diversos lugares do mundo. Os ingredientes regionais apareciam vez ou outra no cardápio. Até que, em 2023, resolveu investir todo seu talento em um lugar que tivesse como estrela a comida do Mato Grosso. Foi assim que surgiu o Toroari Cozinha Nativa, que funciona no rooftop do Amazon Hotel Aeroporto, em Várzea Grande. A vista, além dos paredões da Chapada dos Guimarães, contempla com o icônico morro de Santo Antônio, única elevação dentro de uma plana Cuiabá. "O nome vem daí. Descobri que esse morro era chamado pelos indígenas Bororo de Toroari, que significa Morro do Gavião. Tive certeza de que era esse o nome do restaurante", conta ela, que traz um menu carregado de sabores e ingredientes regionais preparados com uma técnica adquirida ao longo de sua carreira. Pantanal, Cerrado e Amazônia se encontram nas receitas tradicionais revisitadas por Ariani.
Há, por exemplo, a famosa galinhada, em que coxa e sobrecoxa são confitadas. "A cozinha local sempre fez parte da minha história, pelos seus ingredientes. O que estou fazendo é jogar luz sobre ela", explica. O grande destaque do cardápio fica por conta dos peixes. O pacu na brasa recheado com farofa úmida de couve sobre folhas de bananeira limões rosas grelhados, gremolata de quiabo com pimenta biquinho. Já de entrada, vale pedir a caldinho de piranha, um clássico, que vem com crispy de mandioca, vinagrete picante e cebolinha verde.
A decoração também segue o estilo regional. Bem no meio do salão, a mesa rio ocupa boa parte do espaço com uma forma que remete ao movimento de um rio pantaneiro e tem a assinatura da arquiteta Cristiane Belchior. Nas estantes, peças artesanais de cerâmica e madeira e nas paredes, pinturas de artistas locais.
Passeio no Pantanal
Antes de tudo é importante dizer que o Pantanal é a maior planície alagada contínua do mundo. Com 250.000 quilômetros quadrados de extensão, se divide entre o Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, invadindo fronteiras para acomodar-se também no Paraguai e Bolívia. A região é considerada pela Unesco Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera desde 2000. Devido ao seu tamanho, o Pantanal não pode ser considerado único. Na verdade, são onze: Paraguai, Porto Murtinho, Taquari, Nhecolândia, Aquidauana, Miranda, Rio Negro, Cáceres, Poconé e Barão de Melgaço. Um complexo recortado por mais de 170 rios e lar de mais de 650 espécies de pássaros e 300 tipos de peixes. Sendo assim, é possível viver experiências únicas ao se aventurar por esse mundo verde.
Um dos destinos, saindo de Cuiabá, é Barão de Melgaço, também conhecido como Pantanal Alto, que fica a 110 quilômetros da capital. Entre seus cenários espetaculares, está a Baía de Siá Mariana, que tem um pôr-do-sol inesquecível. Dá para o turista ver de pertinho jacarés, araras, tuiuiús, tucanos, sucuris, queixadas e quatis. Uma boa opção para pernoite é a Pousada Siá Mariana, que conta com 18 quartos e fica bem à beira do rio. Os donos, os médicos Magda e José Ricardo Mello, ainda oferecem diversos passeios que incluem pesca esportiva, trilhas e banhos no rio. Durante a estadia, os hóspedes também contam com culinária local, inclusive com bolinho de jacaré e sashimi de piranha. A diária, com todas as refeições inclusas, custa a partir de 2 mil reais.
Conheça alguns pratos que fazem parte da autêntica comida pantaneira
Chipa: esse nome é compartilhado entre Brasil e Paraguai. Consiste em uma massa à base de queijo e polvilho doce, que remete a um pão de queijo. No entanto, a massa não é escaldada o que torna o quitute mais seco. O formato de ferradura é em homenagem à meia-lua encontrada aos pés da Virgem de Caacupê, padroeira do Paraguai.
Furrundum: doce tradicional da cozinha pantaneira, também é conhecido como furrundu. É feito com mamão verde com rapadura e aromatizado com canela, cravo e gengibre ralado.
Ventrecha de pacu: o pacu é um peixe gordo e com ele se costuma preparar a ventrecha, ou seja, as espinhas maiores, fritas ou assadas na brasa. Por serem grandes, muitas pessoas também se referem ao prato com costela de pacu.
Carne seca com banana-da-terra verde: é um dos pratos mais apreciados em Cuiabá. Há também o Guisado à moda cuiabana, que é feito com músculo, milho, banana-da-terra e mandioca.
Caribéu: também conhecido como guisadinho, é tradicional na região mais alta do Pantanal, já que contempla áreas com
mais produção de gado, e consequentemente, o consumo de carne bovina. Preparado com carne-de-sol e mandioca.
Mojica de pintado: prato mais conhecido de Cuiabá, é feito com filé de pintado, mandioca, cebola, tomate e pimentas. A palavra significa "o que vem do rio com mandioca".
Sarrabulho: preparado com miúdos é um prato de festa, normalmente servido nas Juninas. É uma derivação do Sarapatel - feito com rins, coração e fígado - que chegou à região pantaneira junto com o homem do Nordeste.
Paçoca de pilão: diferentemente de outras regiões do Brasil, ela não é doce. Herança do Nordeste, a paçoca é preparada com farinha de mandioca, carne-seca e condimentos e deve ser socada no pilão até se formar uma farofa.