
A forma como se desenrolou a transmissão do cultivo da mandioca pelas Américas ainda não é conhecida. Especula-se que a partir do centro original de domesticação no sudoeste da Amazônia, o cultivo da raiz se disseminou entre as etnias indígenas seguindo o curso dos grandes rios amazônicos, que são até hoje as principais vias de transporte da região.
Tal hipótese necessitava de comprovação e esse foi o objetivo de um estudo feito pelo pesquisador Alessandro Alves-Pereira, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP. O trabalho foi publicado no periódico científico Annals of Botany.
"A integração de estudos arqueológicos e etnobotânicos sugere que a dispersão da cultura da mandioca está ligada aos movimentos humanos pré-históricos ao longo dos rios amazônicos. A partir daí, decidimos usar técnicas de biologia molecular para buscar sinais genéticos de tal dispersão ao analisar a variação no genoma da mandioca", comenta Alves-Pereira.
Os cientistas – da Esalq, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e da Universidade Federal do Amazonas – estudaram dois tipos de genoma de Manihot esculenta: o nuclear, que se encontra no núcleo das células; e o genoma do cloroplasto, a organela presente nas células das plantas onde é realizada a fotossíntese.
O material analisado veio do cultivo de agricultores familiares de 44 municípios ao longo de alguns dos principais rios amazônicos: Negro, Branco, Madeira, Solimões e Amazonas. Também foram coletadas amostras no nordeste do Pará e no sul de Rondônia.
A Manihot esculenta é a espécie selvagem domesticada há nove mil anos. "A mandioca selvagem possui raízes que acumulam amido, mas não são tão grandes quanto as raízes das formas domesticadas. A mandioca selvagem também difere nas formas como é encontrada na natureza. Ela cresce na forma de grandes arbustos, em ambientes mais abertos, e como trepadeiras em ambientes fechados no meio da mata. Já as mandiocas domesticadas são arbustos de um a dois metros de altura, menores e menos ramificados do que os arbustos selvagens", afirma o pesquisador da USP.
Mas, a principal diferença entre as diversas variedades de mandioca está no grau de toxicidade. A mandioca selvagem é uma planta muito venenosa. Suas raízes possuem elevado nível de substâncias precursoras do ácido cianídrico. O consumo in natura é potencialmente letal.
A domesticação da mandioca envolveu a seleção de variedades com menores teores de substâncias tóxicas, até chegar a um produto com teores mínimos, que pudesse ser consumido praticamente sem processamento.
A mandioca vendida em feiras, quitandas e supermercados é a mandioca-mansa, conhecida também como macaxeira ou aipim. Ela ainda contém certo teor de substâncias tóxicas, por isso não pode ser consumida imediatamente após ser colhida. É necessário cortar e descascar as raízes em pequenos pedaços e cozinhá-los para que as substâncias tóxicas sejam eliminadas.
A conclusão do estudo é que a mandioca-mansa foi domesticada primeiro, há cerca de nove mil anos, como sugerido na literatura genética e arqueológica. "Só muito depois é que se domesticou a mandioca-brava. O processo de dispersão de ambas as variedades parece ter sido, portanto, bem diferente, tanto no tempo como no espaço", diz Alessandro Alves-Pereira.
A seleção pelas populações pré-colombianas de índios de variedades de mandioca selvagem com baixos teores de veneno até chegar à mandioca- mansa deve ter sido um processo mais antigo. Segundo o pesquisador, isso porque supõe-se que naquela época as populações amazônicas eram muito menores e nômades. Isso implica uma menor demanda de alimentos, que pode ser suprida por mandiocas-mansas manejadas perto das unidades familiares.
E quanto à mandioca-brava? Uma vez que se domesticou a mandioca-mansa, os antigos grupos de caçadores-coletores começaram a abandonar a vida nômade para se fixar em aldeias e cultivar suas mandiocas. O registro arqueológico indica que entre quatro e três mil anos atrás as populações pré-colombianas começaram a experimentar um aumento populacional. Para alimentar mais bocas, o cultivo de mandioca teve necessariamente que ser ampliado.
(com Jornal da USP)