Pesquisadores de várias partes do Brasil estão interessados em saber o que os brasileiros estão sonhando durante esse período de Covid-19. O projeto "Sonhos em Tempos de Pandemia", realizado pelas universidades Federal de Minas Gerais (UFMG), Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de São Paulo (USP) e, mais recentemente, Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), têm coletado relatos de sonhos para entender como essa crise inédita para todos se reflete em uma das mais intrigantes ferramentas para lidar com ansiedade, medos, desejos, registros das experiências de vida: os sonhos. Até o meio de junho, quando aconteceu a conversa com o coordenador da pesquisa na UFMG, o professor do departamento de psicologia Gilson Iannini, já eram cerca de mil sonhos relatados especificamente para o projeto. As pessoas interessadas em contribuir preenchem o formulário que pode ser acessado pelo link na bio do perfil de Instagram @sonhosconfinados. O documento contém espaço para o relato, interpretação do participante, além de outras perguntas relativas ao sonho e à vida durante a pandemia - se está em isolamento, se cuida de criança pequena ou idoso, se a rotina mudou muito com a Covid-19, entre outras. Como a coleta acontecerá enquanto durar a pandemia, ainda é possível participar - vale dizer, de forma anônima.
Segundo Iannini, a maioria dos sonhos relatados são ruins, inclusive aqueles considerados pesadelos, e raramente palavras positivas e que passam sensações de leveza estão presentes. Entre os diversos projetos de publicação da pesquisa está um livro, menos aprofundado, para pessoas que não sejam da área. "Porque quando a gente conta o sonho, isso alivia o sofrimento. E quando sabemos que outras pessoas também estão angustiadas, sonhando dessa mesma forma, isso também dá um alívio", diz.
1) Como surgiu a ideia da pesquisa?
A pesquisa surgiu ao mesmo tempo em dois lugares. Na UFMG, foi no contexto de um curso da pós-graduação sobre a atualidade do livro A Interpretação dos Sonhos, do Freud. Interrompemos o curso com a pandemia, mas mantivemos as atividades e percebemos, por meio das redes sociais, que tinha muita gente interessada em sonhos, fazendo pesquisas, músicas, obras de arte sobre esse assunto. E percebemos esse interesse renovado pelo tema como um sintoma da época. Ao mesmo, na USP e na UFRGS, já existia um grupo que trabalhava com sonhos antes disso tudo e eles perceberam essa mesma tendência com o início da pandemia. Então a gente uniu as duas. Aos poucos foram entrando outras universidades: a UFRJ e a UFRN, com o Instituto do Cérebro, o que permite um diálogo entre psicanálise e neurociência (que é algo que se esboça aqui e ali, mas agora é sistemático).
2) As pessoas estão sonhando mais ou se lembrando mais dos sonhos?
Dado esse ineditismo da situação de uma pandemia - a não ser para quem tem mais de 100 anos -, a gente não tem as formas simbólicas ou esquemas mentais para dar conta do que está acontecendo. Isso faz com que nosso aparelho psíquico tenha exigência de trabalho suplementar. É como se a mente fosse um computador que tivesse de processar dados para os quais a gente não tem o software instalado, por isso, é obrigado a trabalhar psiquicamente mais, e uma maneira de fazer isso é sonhando, processando à noite o que não deu conta de processar de manhã. A gente tem sonhado mais, porque precisa elaborar o que está vivendo. E também se lembra mais dos sonhos. Isso porque os hábitos de sono mudaram muito, especialmente para quem está em isolamento ou quarentena. Boa parte dessas pessoas pode acordar com mais calma, ficar um pouquinho mais na cama do que em geral (quando as pessoas normalmente já acordam e são logo tragadas para exigências e pensamentos da vigília, que competem com a lembrança do sonho). Se você fica quieto durante algum tempo assim que acordar, sem tantas outras impressões ou percepções, a chance de se lembrar aumenta.
3) Por que o livro Sonhos do Terceiro Reich é uma das inspirações do projeto?
Nesse livro (escrito pela jornalista Charlotte Beradt, que entrevistou alemães quando Hitler chegou ao poder, de 1933 a 1939, sobre seus sonhos), a autora mostra como o sonho tem função coletiva. De alguma forma, aqueles pensamentos, impressões, percepções que temos em vigília, mas não damos conta de admitir, aparecem no sonho com mais clareza. É como se o sonho não tivesse censura moral nem lógica. Misturamos coisas que, com bom senso do dia a dia, a gente não mistura, e o sonho não julga como a gente julga, com nossas regras e valores da moralidade. Então muitas das coisas que a gente não dá conta de admitir com as ferramentas da consciência, o sonho elabora. O livro mostra como os alemães começaram a perceber o perigo do nazi-fascismo muito antes de se darem conta conscientemente. O sonho estava funcionando como uma espécie de radar, lente de aumento. Isso não quer dizer que seja algo de predição do futuro. O futuro é contingente, mas o inconsciente capta aquilo que a consciência não capta. A consciência é limitada.
4) Há outra referência em que se basearam para a pesquisa?
Outro livro igualmente importante é de Freud, escrito em 1919, que se chama O Infamiliar. Ele descreve (em um contexto da guerra, da epidemia de gripe espanhola) o que eu acho que está sendo prevalente hoje, um tipo de sensação que todo mundo está tendo: é uma angústia que não é exatamente uma angústia, é um estranhamento do que é muito familiar. Por que nos sentimos só dentro de casa, mesmo com outras pessoas? Ele deu a isso o nome de infamiliar, que é estranhar o que íntimo. Freud diz que esse tipo de sentimento aparece mais na ficção do que na realidade, quando a ficção invade a realidade. A minha hipótese é de que a gente está vivendo isso, a gente perdeu as fronteiras entre ficção e realidade. A impressão que se tem ao andar na rua é a de que você está em um filme. Todo mundo de máscara. Você vai nos mesmos lugares e a impressão é de que era um sonho. Tem algo de muito novo acontecendo e o sonho de alguma forma capta isso.
5) O que os sonhos têm mostrado sobre o momento pelo qual estamos passando?
Ainda estamos começando a análise, não tenho dados para te dar uma resposta muito precisa. Mas que as pessoas estão muito angustiadas, estão. E não apenas pela pandemia, vírus, morte, mas com os problemas políticos, sociais e econômicos associados a isso. A angústia aparece com muita clareza. Mais do que isso eu não sei se poderia afirmar neste momento.
6) Podemos dizer que a atenção maior é para o relato do sonho e não ao sonho em si?
O que interessa ao psicanalista são as palavras, como a pessoa verbaliza esse sonho. Mesmo que existisse método, uma máquina que permitisse de alguma maneira captar a imagem do sonho, isso não é o mais interessante. E sim como a pessoa traduz, elabora, processa o sonho. No formulário há um item em que você pode escrever três a cinco palavras que descrevem melhor os seus sonhos durante a pandemia. E vemos muitas palavras como horror, genocídio, revolta, medo, ansiedade, distanciamento, incerteza, aflição. É rara uma palavra como "paz".
7) Por que isso acontece?
Acredito que há uma tendência, no geral, de lembrar um pouco mais dos pesadelos do que sonhos bons; contudo, não de forma tão expressiva quanto agora. Até o momento, ao escolher entre as categorias "sonho", "sonho ruim" e "pesadelo", temos 36.4% como a primeira, 38.2% como a segunda e 25.% como a terceira. Vê-se como sonho ruim e pesadelo são maioria, quase dois terços dos relatos.
8) Vocês trabalham com a hipótese de que pessoas atuando de forma direta com a pandemia têm sonhos mais relacionados à Covid-19?
A gente não fez ainda a análise dos dados. Contudo, no início, a gente via que tinha uma prevalência, entre profissionais de saúde, de sonhos mais ligados a temas de limpeza, assepsia, o branco muito presente, sonhos a ver com sujo e limpo, infectado e desinfectado. Estamos querendo estudar também, longitudinalmente, ao longo do tempo, com aumento do número de mortos, se e como isso está se traduzindo nos sonhos.
9) Quais palavras vêm aparecendo mais nos relatos até agora?
Numa análise preliminar, meramente quantitativa de frequência de palavras, percebemos alguns dados interessantes e preocupantes. É claro que são dados brutos, que precisam de ponderação, de estatística mais fina. Nos primeiros 369 sonhos, coletados entre abril e maio, as palavras que mais aparecem são casa (354), mãe (124) e amigo/a/s (120). Depois vem namorado, carro, cidade, pai, etc. Quarentena aparece 29 vezes, pandemia 21, matar 19, morte 11. Em junho, as palavras mais frequentes continuam sendo casa, mãe e amigo/a/s, mas relativamente a abril e maio, elas são menos representativas. A frequência de "pandemia" dobra, de "quarentena" diminui quase pela metade. Ou seja, antes as pessoas se preocupavam mais com a quarentena, agora mais com a pandemia. Resultado esperado, claro. Mas o dado mais impressionante é o aumento significativo, no último mês, das palavras morte e matar. Em geral, alguém ou algo "tentando me matar" (o número dessas ocorrências quase dobra). Esse aumento é concomitante ao aumento da frequência da presença de vocabulário de termos dos noticiários políticos (como fascismo) e de figuras políticas no relato dos sonhos, como o próprio Bolsonaro (aumento de mais ou menos um terço). Se a gente correlaciona ocorrências de palavras nos sonhos com ocorrências de palavras nas lembranças do(s) dia(s) anterior(es) - o que Freud chamava de restos diurnos - é bem interessante, porque, por exemplo, "casa" aparece apenas 64 vezes e mãe apenas 15, na primeira amostra. Parece não haver correlação muito direta entre frequência de lembranças conscientes de acontecimentos do dia relacionados a esses conteúdos. A amostra de junho parece confirmar isso. O dado da frequência enorme de casa e mãe muito mais significativo nos sonhos do que nas lembranças sugere a necessidade de retorno a esse paradigma de proteção contra o desamparo, necessidade de proteção, etc. Por outro lado, a frequência de "Bolsonaro" e de termos políticos nas lembranças é praticamente igual na primeira amostra abril/maio e na segunda (junho), mas a frequência nos sonhos aumenta significativamente em junho. Isso sugere que a vida privada inconsciente está mais permeável a esse contexto sócio político.
10) Qual a previsão para a conclusão do estudo?
O material que estamos colhendo é muito rico e vai dar para fazer muita coisa por muito tempo. Temos convites de editoras para fazer livros, e devemos fazer um deles para o público geral, uma obra mais simples, mais curta. Porque quando a gente conta o sonho, alivia o sofrimento. E quando sabemos que outras pessoas também estão angustiadas, também sonhando assim, isso dá um alívio. Também faremos artigos mais técnicos, com análises de todas as variáveis. E já há alunos na pós que estão migrando suas pesquisas para esse tema. É provável que saiam teses e dissertações. Na UFRJ, estão estudando gênero - a ideia é tentar entender se e como as mulheres, especificamente, estão vivenciando isso tudo. Por isso temos perguntas no formulário sobre a pessoa ter de cuidar de filhos, idosos, etc. O material é o mesmo, mas as perguntas que a gente tem são variadas.