Era de se esperar que, em um momento tão atípico como o de uma pandemia, obras sobre as experiências pessoais de isolamento social e testemunho de cenas tão impactantes mundo afora fossem aparecer. Uma das formas que esses escritos têm tomado é a de curtos textos no estilo diário pessoal, porém, em posts nas redes sociais. Para o prazer de quem acompanha escritoras no mundo virtual, algumas delas têm feito a experiência, nos brindando com linhas cheias de reflexão, poesia e potência. Elas têm dividido seus temores, apreensões, irritações, rotinas e alegrias com seguidores de forma diária - ou ao menos bastante regular - no Instagram, rede que originalmente foca mais na imagem do que nos textos. Cada uma com um formato, estilo, apresentação, dão materialidade a sentimentos que muitos têm tido neste momento.
A escritora mineira Sabrina Abreu, por exemplo, tem feito uma série chamada Notas Isoladas, em que posta uma imagem de um caderno com a contagem dos dias de quarentena e coloca um aforismo, um pensamento, uma frase relacionada com seu dia ou com acontecimentos que tenham marcado o cenário nacional ou mundial. A jornalista, que mantém um diário offline há muitos anos, diz que a experiência do diário visual no Instagram é diferente de tudo o que já fez, desde os escritos "impublicáveis" de seu caderno pessoal até seus cinco livros já lançados. "Estamos vivendo uma época totalmente diferente, e eu nunca tinha tido essa prática na internet, mas pensei que sou uma pessoa que cria e quis experimentar esse suporte", afirma. "E estou muito encantada", completa.
A experimentação já rendeu quase 200 posts, que as pessoas curtem, compartilham e comentam - muitas vezes porque se identificam com aquilo que leem. No post "Todo dia eu digo ‘só mais um pouquinho’ e só mais um pouquinho eu consigo há mais de 100 dias", por exemplo, uma seguidora comentou: "meu deus, SIM!!! É isso que eu tô repetindo aqui também, obrigada por esse post." Apesar de não escrever buscando necessariamente a identificação, Sabrina diz que fica feliz com a possibilidade de proporcionar o sentimento, quando é o caso. "Saber que tem alguém lá fora passando por algo parecido é muito legal. Dou ainda mais valor para as redes sociais depois desse projeto, estou achando mágico", afirma.
O Notas Isoladas ganhou projeção e virou até tema de uma palestra no Tedx Talks São Paulo, em julho, chamada "Eu escrevo todo dia e quero que você escreva também", em que Sabrina fala sobre sua prática e sobre alguns diários famosos da história, como o da jovem holandesa Anne Frank, publicado por seu pai após sua morte no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, na II Guerra Mundial. Pelas Notas Isoladas, é possível perceber as mudanças de humor, sentimentos e visões da pandemia com os quais muitas pessoas podem se identificar. Primeiro, não achando tão ruim ficar em casa, depois a angústia sentida pelas mortes, pelas pessoas sofrendo, e em seguida colocando na pauta acontecimentos nacionais e internacionais, como o movimento Black Lives Matter (vidas negras importam). "Foi um arco inteiro de narrativa", diz Sabrina. "Alguns posts saem melhores, outros piores, é assim mesmo. Estou achando muito legal e enquanto tiver quarentena, eu quero continuar, porque tem feito sentido para mim", afirma.
Em formato mais extenso (tanto quanto o Instagram permite), a escritora Marcela Dantés também tem feito um diário de quarentena. Até o fechamento da edição, estava no dia 167, em que escreveu "...Eu sigo comendo muito açúcar, mas conheço quem não. Vontade de sair na rua correndo e gritando e olhando no fundo dos olhos e concordando com uma gente que me encara e pensa: sua louca."
Marcela, autora de um livro publicado e um que será lançado este mês (Nem Sinal de Asas, pela editora Patuá), começou a postar textos no Instagram no 66º dia de isolamento social imposto em BH. "Antes disso, minha rede tinha apenas fotos do meu filho, e antes dele, de cachorro", diz. Ela conta que, nessa altura do isolamento, imaginou que a quarentena já teria acabado. "Quando me dei conta, estávamos sem a menor previsão. Eu tinha entregado meu romance, não estava conseguindo produzir ficção e quis encontrar uma forma de não ficar parada", explica. Segundo ela, os textos começaram biográficos mas, com o passar do tempo, foram incorporando experiências que outras pessoas lhe contavam. O tom é de sinceridade, realidade, muitas vezes angústias e frustrações, mas também celebração de pequenas vitórias e momentos felizes, como o dia em que seu filho aprendeu a andar.
A identificação dos seguidores com os escritos também foi surpresa para publicitária de formação, que atribui a boa recepção de seu diário ao fato de que as pessoas se cansaram de quem glamouriza a quarentena. "Muita gente tem romantizado a quarentena, ou pelo lado muito reflexivo ou pelo lado de aproveitar o tempo, fazer pão", conta. " As pessoas estão perdidas, então é bom saber que tem gente que está se sentindo do mesmo jeito. Além disso, todo mundo está precisando compartilhar, e como estamos isolados, não têm muito com quem trocar", explica.
Fora de Minas, outro exemplo de escritora que explorou essa prática é a paulista Noemi Jaffe, também crítica literária e professora, cujo diário "instagramístico" da quarenta se encerrou no final de junho. Nele, reflexões, comentários sobre algum acontecimento do dia, análises de livros ou filmes vistos no isolamento, tudo com muita poesia e jogos de palavras que lhe são tão caros. A jornalista e bordadeira catarinense Thayana Pretto criou o projeto #bordarpranãopirar, em que borda frases em bastidores, fotografados e postados no Instagram, como "Lágrimas reais em conversas virtuais" ou "Que saudade de sentir saudade de ficar em casa".
Claro, não apenas mulheres têm usado a escrita para se expressar na quarentena, mas a prática do diário é mais comum entre elas. "A gente sempre se sente mais à vontade para falar, isso é cultural, histórico. Tanto para desabafar com amigas, como com profissionais. Homens têm mais resistência a isso", afirma Marcela. "Ao mesmo tempo, dizer que está cansada, exausta, vem acompanhado da culpa, como se não pudéssemos nos sentir assim. Cada post que faço é agridoce nesse sentido, penso: ‘será que eu deveria estar reclamando?"
Sabrina lembra que, historicamente, a prática de escrever em diários não tem nada de feminina, citando exemplos como o de Freud e o de Mark Twain, que mantinham o hábito. "Atualmente, na nossa cultura, contudo, é algo muito feminino. Se você for comprar um caderno de diário, só encontra opções bem femininas", diz. Por outro lado, ela pontua que a extrapolação do diário para o público não é um movimento tão evidente para elas. "Historicamente, a mulher tem mais medo do ridículo, de se expor desse jeito."
As duas mineiras decidiram ir diminuindo a frequência dos posts após mais de uma centena, cada uma. Contudo, dizem que devem continuar com os projetos, mesmo que não diariamente. E atestam as vantagens de se escrever todo dia. Para quem acha que não tem o talento para publicar, vale tentar ao menos em seu caderno pessoal - além de acompanhar os diários virtuais de quem tem talento de sobra.