Estado de Minas SAÚDE

Excesso de exposição a telas tem impactos no cérebro de crianças e adolescentes

A luz brilhante de dispositivos eletrônicos direcionada aos pequenos está se tornando doença e exigindo mudança dos pais


postado em 27/01/2021 00:03 / atualizado em 27/01/2021 16:24

Computadores e celulares são vilões?: discussão sobre o uso de telas é antiga, mas fechamento das escolas e a ausência das relações sociais deixou o excesso mais claro(foto: Pxhere)
Computadores e celulares são vilões?: discussão sobre o uso de telas é antiga, mas fechamento das escolas e a ausência das relações sociais deixou o excesso mais claro (foto: Pxhere)
O garoto está no quarto há várias horas. Talvez por um dia inteiro. Está longe da família, mas não está sozinho. Tem na sua frente uma parte do mundo, fala alto, discute com os amigos virtuais. A menina se distrai por horas em frente à câmera do celular, ensaiando poses para o vídeo do Tik Tok, medindo sua audiência. A realidade não é nova. Todos sabem que a overdose digital não começou com a chegada do novo coronavírus. Ela é antiga. O fechamento das escolas e a ausência das relações sociais apenas deixou o excesso mais claro. Em janeiro de 2022, a dependência de videogames e de redes sociais se tornará oficialmente uma nova doença, ganhando o seu próprio CID (Código Internacional de Doenças). Enquanto isso, pesquisas ao redor do mundo alertam para os impactos do uso exagerado de telas no desenvolvimento do cérebro. Um recente estudo francês chama atenção mostrando uma redução do QI infantil (Coeficiente de Inteligência), que vem sendo impactado pelos meios digitais. Se não está fácil para as crianças, o cenário não é tranquilo para os pais. Diante de tamanho turbilhão, em casa não há como dividir a responsabilidade e as famílias são chamadas a assumir a mediação desse conflito.

O neuropediatra Rodrigo Carneiro:
O neuropediatra Rodrigo Carneiro: "É difícil lidar com um sistema de recompensas tão sedutor como o que é oferecido pelas telas" (foto: Violeta Andrada/Encontro)
Não é tão difícil enxergar que os adolescentes - crianças menos ainda - não conseguem acionar mecanismos para inibir o prazer imediato que os jogos e as redes proporcionam. "Por mais que confiemos neles, ainda não estão prontos para essa responsabilidade", alerta o neuropediatra Rodrigo Carneiro, presidente da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e profissões afins. Sozinhos, explica o médico, eles não conseguem ainda escolher conteúdos que favoreçam o desenvolvimento nem regrar as horas de jogo. "É difícil lidar com um sistema de recompensas tão sedutor como o que é oferecido pelas telas." A evolução tecnológica pode ser aliada em termos de educação e ensino, mas, frequentemente, o uso extrapola para a exposição maciça a entretenimentos de baixa qualidade e passivos, trazendo impactos até mesmo sobre o desenvolvimento da inteligência.

O estudo sobre o QI conduzido pelo neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França, foi mais um grito entre as vozes que alertam sobre os efeitos da superexposição. A pesquisa de Desmurget foi publicada em um livro com título agressivo: A Fábrica de Cretinos Digitais. Para o neurocientista, essa é a primeira vez na história que o QI de crianças e adolescentes é menor do que o da geração anterior. Os pequenos de hoje serão menos inteligentes que seus pais. E o que estaria afetando o desenvolvimento do cérebro seriam os equipamentos digitais. Estaríamos caminhando para uma parada ou um atraso na evolução do QI? As telas participam de forma ativa nesse resultado? Segundo Rodrigo Carneiro, não é possível ir tão longe nas conclusões, mas o estudo  francês  "é um alerta grande e de valor". Mesmo que sejam necessárias mais pesquisas em outras culturas, adequando os testes às transformações das crianças, que são muito rápidas e dinâmicas, o estudo, para o neurologista, chama atenção de modo importante para os riscos a que as crianças estão expostas.

A médica pediatra Juliana Franco:
A médica pediatra Juliana Franco: "Ao mesmo tempo que a tela me dá sossego e paz para fazer minhas coisas, percebo que não exerço meu papel de pai ou mãe" (foto: Fernanda Sá Motta/Divulgação)
Estudos consistentes demonstram que o uso das telas para crianças menores de 2 anos e meio tem como impacto transformações que tornam o cérebro menos competente para se adaptar. "Existem outros fatores, como a nutrição, ambientes mais protegidos, menor socialização, que reduzem os estímulos de maior qualidade para o desenvolvimento do cérebro", diz Rodrigo.  Outro ponto importante sob o impacto das telas é o sono (ou a falta dele), que afeta a fisiologia e o desenvolvimento cognitivo influenciando nas reações que são medidas pelos testes de inteligência. O médico ensina que as rotinas funcionais, geralmente divididas entre a escola e as atividades extracurriculares, a leitura, a música e até as refeições em famílias são importantes para garantir o desenvolvimento mais "flexível" do cérebro.

Fernanda Teles, especialista em parentalidade:
Fernanda Teles, especialista em parentalidade: "Quando a criança é retirada desse mundo e fica presa por muito tempo às telas, é como se tivesse sido raptada para um lugar de alienação que impede o desenvolvimento de suas habilidades cerebrais, de sua inteligência" (foto: Mariana Rezende/Divulgação)
O estudo francês sobre o impacto das telas no QI só veio confirmar o que os pediatras já dizem há um bom tempo, observa a médica pediatra Juliana Franco, que também é palestrante, educadora parental e especialista em neurociência do comportamento. Para ela, o excesso tem impacto sobre o QI, porque o uso excessivo de conteúdo de entretenimento impede o desenvolvimento de regiões do cérebro com impacto cognitivo, refletindo em uma baixa da inteligência. No entanto o prejuízo é também para outras áreas, como a emocional. "Mas o maior impacto é o do abandono", diz a médica. Segundo ela, não há como mudar a realidade sem responsabilizar os pais. "Há anos damos telas para os nosso filhos para termos tempo." Segundo Juliana, com o convívio mais próximo da família impulsionado pela pandemia, o uso exagerado ficou evidente e passou a preocupar mais. "Ao mesmo tempo que a tela me dá sossego e paz para fazer minhas coisas, percebo que não exerço meu papel de pai ou mãe." A pediatra acredita que o uso da tecnologia, em si, não é um problema. Na escola, por exemplo, é um recurso importante. "O risco está no conteúdo de entretenimento, como os jogos", diz. "O que as crianças querem é atenção. Elas querem brincar e as telas fazem o papel da babá, dos pais, satisfazem as necessidades de ter um adulto ao lado." Juliana conta que há no Brasil hospital que dedica uma ala ao tratamento da dependência digital. Essa dependência traz um efeito equivalente a substâncias viciantes como a cocaína. Na substituição desse prazer estão atividades como o diálogo familiar, a escuta amorosa, os encontros com a turma e o esporte. "Quando o adolescente joga, ele libera dopamina e se sente satisfeito." Conter o vício não é tarefa é fácil. A atuação deve ser de formiguinha. "É um trabalho lento, uma diminuição de 30 minutos por vez."

Especialista em parentalidade positiva e consciente, Fernanda Teles também traz para os pais a responsabilidade exclusiva do uso adequado da tecnologia. Ela diz que é necessário desenvolver uma cultura familiar e que a educação das crianças passa pela conscientização dos adultos. "Ninguém disse que seria fácil ser mãe e ser pai." Para as crianças, ela costuma explicar os riscos do excesso dos jogos e entretenimento digital contando histórias. "A potência da criança está na imaginação e na criatividade", diz Fernanda. "Quando ela é retirada desse mundo e fica presa por muito tempo às telas, é como se tivesse sido raptada para um lugar de alienação que impede o desenvolvimento de suas habilidades cerebrais, de sua inteligência." Fernanda diz que antídotos importantes para o efeito negativo são os combinados, o relacionamento da família e de novo os esportes. Não é fácil, mas é possível. Vale a pena começar. Ainda que um pouco de cada vez.

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