Revista Encontro

COMPORTAMENTO

Você sabe o que é positividade tóxica?

Também chamada de felicidade fake, ela faz mal e se caracteriza por excesso de otimismo, a ponto de reprimir sentimentos de angústia e tristeza

Marinella Castro
A psicóloga Renata Borja, especialista em terapia cognitivo comportamental: "Todas as nossas emoções devem ser acolhidas. O que define o bom e o ruim é a forma que lidamos com elas" - Foto: Rafaela Lima/Divulgação
O contrário da tristeza é a euforia? Não, é a vida real, com seus altos e baixos. Mas parece que ultimamente só vale ser feliz e há uma espécie de aversão às angústias existenciais, sentimentos que fazem parte da construção do o ser humano. Nas redes sociais, todos exibem alta energia e disposição, sucesso e alegria intensa. Para as adversidades um viés hiperpositivo é capaz de contornar qualquer tristeza. O movimento relativamente novo ganhou até um nome bacanudo, em inglês: "good vibes only". Só que existe um detalhe: como essa alegria máxima e permanente é uma fakenews, o excesso de otimismo e de felicidade começou a ser desmistificado, ganhando um nome definido por profissionais da psicologia como positividade tóxica.

Lidar com emoções como angústia, raiva e baixo astral nunca foi fácil. Mas reconhecer os sentimentos é o primeiro passo para caminhar adiante, repetem os especialistas. É fato que às vezes quem se sente triste acaba se vendo um pouco fora do lugar, como se fosse indesejado, fora do contexto.
Nas redes sociais,  posts dos superpositivos incentivam a ver sempre o lado otimista. Esse pensamento, segundo psicólogos, pode ser uma armadilha grave, uma auto-enganação. Cedo ou tarde será necessário enfrentar os incômodos. "A obrigação de ser feliz gera uma angústia muito grande", define a psicóloga Renata Borja, especialista em terapia cognitivo comportamental. Segundo ela, muitas vezes a pessoa que não se sente eufórica na sua rotina acaba ficando mal, até por acreditar que não tem tanta energia positiva como o mundo parece transbordar. Como ninguém é feliz o tempo inteiro, a positividade tóxica é exatamente a exacerbação de um sentimento de otimismo a ponto de a pessoa não enxergar a realidade e escolher encobrir os problemas. "Não há mal em não se sentir bem. A partir de uma situação ruim eu posso conseguir caminhos para transpor as dificuldades", diz Renata. Ela reforça que a felicidade é um conceito muito mais profundo do que ter uma vida só de bons momentos. "O que vai determinar o bom e o ruim é o nosso comportamento. Eu posso sentir raiva e usá-la para atingir objetivos. Transformar minha ansiedade em um alerta que poderá me proteger."

A terapeuta integrativa Raquel Negri diz que ninguém é feliz o tempo todo: "Temos de reconhecer nossas potencialidades e fraquezas. Aceitar os dois" - Foto: Pádua de Carvalho/EncontroO que não dá é para sufocar os sentimentos, jogar a tristeza para debaixo do tapete. O filme Um Lindo Dia na Vizinhança, estrelado pelo ator Tom Hanks, é uma história simples que fez sucesso muito por sua principal mensagem: é normal não se sentir bem.
O longa conta a história de Mr. Rogers, um apresentador infantil desconhecido dos brasileiros que comandou um programa infantil nos Estados Unidos entre 1968 e 2001. Apesar de ser um programa com marionetes e canções infantis, Mr. Rogers falava com as crianças de temas complexos como medo, raiva e divórcio dos pais. Com empatia, buscava ajudá-las a compreender suas emoções. Tocando as teclas graves de seu piano, o personagem de Tom Hanks mostrava que mesmo o apresentador tinha suas angústias.

Boa parte do charme do filme está no fato de a vida real ser capaz de comover diante de uma supervalorização da felicidade. O psicólogo e especialista em gestão de pessoas Anderson Rodrigues lembra que, no período da pandemia, ansiedade, medo e luto se tornaram exemplos de sentimentos que foram aflorados e que tentar isolá-los dentro de uma áurea de positividade é um descompasso e pode trazer efeito contrário.  A oscilação de humor de acordo com as experiências que experimentamos é algo esperado, segundo o psicólogo. Reprimir as emoções negativas, ou desreguladas é quase uma tentativa de invalidar as emoções, ou seja, tentamos dispensar os problemas ou desafios para que eles não nos tragam sentimentos ruins. "Esse movimento cria a ideia de que para termos saúde, qualidade de vida, precisamos excluir pensamentos e sentimentos negativos do nosso dia a dia", diz. O que, ao contrário do que parece, não é nada bom.
"As emoções exercem um papel importante nas nossas vidas, informam o que está acontecendo com a gente e nos ajudam a enfrentar de forma adequada a situação que vivemos. As oscilações são indicadores de saúde mental."

O psicólogo Anderson Rodrigues diz que a positividade tóxica pode chegar também no ambiente de trabalho, tendo efeito negativo nos resultados: "Ela leva a uma produção menor exatamente porque não é possível manter esse estado de espírito por muito tempo" - Foto: DivulgaçãoAnderson, que também é mestre em qualidade de vida no trabalho, lembra que a moda da positividade tóxica chegou também no ambiente profissional. "Não estamos no controle de tudo e a pandemia reforçou isso", afirma. "O mais importante é saber lidar com os contratempos." Para Anderson, a cultura da produtividade extrema está relacionada à positividade tóxica. "Ela leva a uma produção menor exatamente porque não é possível manter esse estado de espírito por muito tempo." Mais do que estar super feliz, a produtividade e o rendimento são maiores quando a pessoa se sente acolhida no ambiente de trabalho, recebe feedbacks constantes do líder e enxerga sentido no projeto que desenvolve. A positividade ou felicidade permanente pode ser comparada a mais uma fakenews dos nossos tempos midiáticos, explica o psicólogo.

A coach de carreira e especialista em psicologia positiva Lidiane Cordeiro lembra que não existe um prazo para curar-se da dor ou superar uma dificuldade. E muito menos uma fórmula a seguir para vencer esses desafios, já que a solução de cada um é uma construção única. A busca por receitas prontas e caminhos curtos, negligenciando emoções como a tristeza, o desalento, desamparo ou mesmo o tédio, só tem um destino: a comparação, que pode provocar o efeito contrário do que se procura. "O crescimento dessa busca por fórmulas prontas somado ao crescimento, ainda mais durante a pandemia, dos incontáveis cursos online, palestras e lives, possivelmente alastrou o efeito colateral da positividade, a positividade tóxica", alerta Lidiane.

A coach de carreira e especialista em psicologia positiva Lidiane Cordeiro: "O crescimento dessa busca por fórmulas prontas somado ao crescimento, ainda mais durante a pandemia, dos incontáveis cursos online, palestras e lives, possivelmente alastrou o efeito colateral da positividade, a positividade tóxica" - Foto: Arquivo pessoalTerapeuta integrativa, especialista no manejo do estresse, ansiedade e distúrbios do sono, Raquel Negri reforça que as pessoas, ao usarem a positividade ao extremo, tentam evitar o sofrimento, fugir da dor. Mas em algum momento serão forçadas a lidar com seus problemas. "Ninguém, ninguém mesmo, vive sem encontrar adversidades na vida." Raquel considera importante ressaltar que há uma diferença entre a chamada positividade tóxica e a psicologia positiva, da qual ela, assim como Lidiane, é adepta. A psicologia positiva trabalha pela construção de um estado de resiliência, em que as emoções são acolhidas e entendidas. São observadas ainda as relações que essas emoções têm com os pensamentos e o comportamento, buscando a superação das adversidades. Para Raquel o melhor caminho a seguir é o do equilíbrio conquistado com o autoconhecimento. "Temos de reconhecer nossas potencialidades e fraquezas.

Aceitar os dois. Valorizar o que merece e procurar desenvolver e melhorar o que precisa de atenção. Há muitas maneiras de se buscar isso."Um personagem conhecido é a Pollyana, a menina que fazia o jogo do contente para conseguir ver sempre o lado bom das coisas. Seria a Pollyana tóxica em nossos tempos? Para Raquel Negri, não. "A Pollyana do livro encontrou esse jeito de viver porque também fazia parte da personalidade dela ser uma pessoa mais leve", afirma. "O que eu gosto na personagem é o fato de ela enxergar nas pessoas com quem convivia suas boas características." E todos nós somos assim, um misto de "sombra e luz". Para Raquel, o modelo saudável de lidar com as emoções pode ser definido por uma frase da ioga: "o melhor caminho é o do meio."
.