Revista Encontro

VIAGEM

Fomos conhecer as delícias da gastronomia da Serra da Mantiqueira

De um lado o pé de moleque de Piranguinho; do outro, o queijo D'Alagoa. Dois produtos cheios de histórias e sabores que representam muito bem região, polo gastronômico ainda pouco explorado pelos mineiros

Carolina Daher
Panorama da Serra da Mantiqueira: região tem 24 municípios, quase 500 quilômetros de extensão e se divide entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro - Foto: Nereu Jr./Divulgação
Em 1932, o casal Modesto e Matilde Torino chegou em Piranguinho, no Sul de Minas, para começar uma vida nova. Ele, funcionário da ferrovia, assumia a chefia da Estação de Trem. Lembrando que naquela época o país era movido a Maria Fumaça. Quituteira de mão cheia, Matilde logo teve a ideia de começar a fazer sonhos, bolos e outras delícias para vender para os passageiros e incrementar a renda da família. Ela vendia por uma pequena janela, já que o casal morava dentro da própria estação. O tempo passou e, quatro anos mais tarde, ela teve a ideia de produzir um doce feito com rapadura e amendoim. Nascia assim, o famoso Pé de Moleque de Piranguinho. Uma das filhas de Modesto e Matilde, visionária já naquela época, incomodada com o fato de que muitos viajantes não desciam do trem, pediu a permissão ao pai para vender alguns doces dentro dos três vagões.
Contratou alguns meninos como vendedores e o negócio deu certo. "O meu avô ajudou. Ele só dava a bandeirada para o trem partir quando via os garotos descerem com as bandejas vazias", ri Sonia Torino, que hoje comanda a Barraca Vermelha.

O preparo do Pé de Moleque de Piranguinho: primeiro, o amendoim é escolhido e torrado, para só depois se juntar a rapadura já derretida no imenso cobre de tacho. Ainda fervendo, ele vai para o tabuleiro. Quando amorna, é cortado em quadradinhos, que chegam ainda quentes no balcão da lojinha - Foto: Nereu Jr./DivulgaçãoQuando o trem deixou de apitar e a BR 459 foi inaugurada, na década de 1950, mais uma vez Alceia, a filha empreendedora, resolveu abrir uma barraca para vender os doces bem à beira da estrada. Para chamar a atenção do público, pintou o lugar de vermelho, sua cor preferida. Hoje, mais de 80 anos depois, o Pé de Moleque de Piranguinho virou Patrimônio Imaterial do município. Em 2009, a cidade também ganhou o título de "Capital Nacional do Pé de Moleque", pelo governo estadual. Pelo Brasil inteiro é possível provar o doce. Nada, no entanto, supera a experiência de experimentar o produto ali, in loco. Ele é preparado de hora em hora. Primeiro, o amendoim é escolhido e torrado, para só depois se juntar a rapadura já derretida no imenso cobre de tacho. Ainda fervendo, ele vai para o tabuleiro. Quando amorna, é cortado em quadradinhos, que chegam ainda quentes no balcão da lojinha. "Temos os mesmos clientes há décadas.
Muita coisa mudou, mas a qualidade é a mesma", garante Sonia, que chega a vender 120 mil doces por mês. O processo é artesanal e a fábrica conta com quatro funcionários, entre eles Adilson Natalino Marins, que trabalha ali há 20 anos. "Fico muito feliz em fazer um doce que vem gente de fora para experimentar", diz.

Outra versão do nascimento do pé de moleque em Piranguinho dá conta de que, em 1911, Maria Paulina de Noronha, mais conhecida como dona Neném Paca, abriu um pequeno mercadinho. Os viajantes que por ali passavam, paravam para tomar um cafezinho, bolo, biscoito e o tal doce de amendoim. O mais importante, entretanto, é que Neném, Matilde e tantas outras mulheres conseguiram colocar o município na rota turística da Mantiqueira com a tal receita. Atualmente, a cidade conta com várias barracas coloridas, cada uma representando uma família produtora. Com pouco mais de 8,5 mil habitantes, ocorre ali anualmente a Festa do Maior Pé de Moleque do Mundo, que reúne mais de 10 mil visitantes por dia. É normalmente realizada em junho (nos últimos dois anos não aconteceu devido a pandemia) e os produtores se reúnem para fazer um doce gigante em plena praça. Em 2019, foram 24 metros. Entrou, inclusive, no Guinness Book - Livro dos Recordes.
"A cada ano a gente aumenta 2 metros. Uma hora não vai caber mais na praça", brinca Sonia. E se você ainda duvida que o pé de moleque dali é mágico, em 1953, Carlos Drummond de Andrade escreveu o seguinte sobre a delícia de Piranguinho: "E tenho ainda na boca o sabor sensacional do pé de moleque, pura joia mineira".

Dona Sonia Torino chega vender 120 mil doces por mês: "Temos os mesmos clientes há décadas. Muita coisa mudou, mas a qualidade é a mesma" - Foto: Nereu Jr./DivulgaçãoMas nem só de doçura se faz a Mantiqueira. Tem sabores variados, com seus queijos, azeites, vinhos... Com quase 500 quilômetros de extensão, a serra se divide entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Dos seus 24 municípios, 60% estão em território mineiro (a região foi visitada pela repórter durante uma expedição promovida pelo Fartura - Gastronomia do Brasil). O Sul do estado, conhecido pelos turistas por suas estâncias de águas minerais, é também um território incrível para ser descoberto por quem adora comer bem. É bom reforçar que é dali, dessa região, que saem, inclusive, os melhores cafés do mundo.

A família de produtores formada por Dirse, Caik e Márcio Martins: "Tem hora que nem acredito em tudo que aconteceu. Tem gente que vem do outro lado do mundo para ver como trabalhamos. É muito orgulho", diz a matriarca - Foto: Nereu Jr./DivulgaçãoOutro produto que vem conquistando o paladar ao redor do planeta, sem força de expressão, é o queijo D'Alagoa. Em setembro, no último Mondial du Fromage et des Produits Laitiers, o Oscar dos queijos, que ocorre em Tours, na França, o queijo Alagoa Fumacê e o Queijo da Araucária levaram medalha de prata. Na verdade, o Brasil fez bonito no concurso para eleger os melhores do mundo: foram 57 medalhas, sendo cinco delas super ouro; 11 ouro; 24 prata; e 17 bronze. Ao todo concorreram 940 amostras, de 46 países. E lá estavam os queijos produzidos em Alagoa, cidadezinha que fica lá no alto da serra, a 1.132 metros de altitude e que tem 112 queijeiros entre seus 2,7 mil habitantes. Diferentemente de outras regiões, o queijo que se produz ali não é aquele reconhecido e regulamentado oficialmente pelo governo de Minas Gerais como queijo minas artesanal. Ele tem uma sutileza na produção que o leva a outra classificação. É também artesanal (a certificação foi conquistada em 2010), mas o leite não entra cru na receita. Ele é aquecido a no máximo 50 graus. Esse pequeno detalhe garante um sabor único, tanto que o queijo D'Alagoa, ficou conhecido nacionalmente como o parmesão de Minas.

O "tropeiro digital" Osvaldo Martins mudou a história da pequena cidade onde nasceu quando resolveu vender queijo on-line em 2009: "Acharam que eu era doido" - Foto: Nereu Jr./DivulgaçãoO preparo diferente tem sua razão de ser. A história do queijo ali começou há mais de um século, com a chegada do italiano Paschoal Poppa, que diante da fartura de leite resolveu investir na produção de queijo. Sua receita é praticamente a do tradicional Parmigiano Reggiano. O leite cru, adicionado ao fermento coalho, é aquecido entre 47 e 50 graus. A massa é enformada e passa 36 horas mergulhada em salmoura. Depois de lavados, explica dona Dirse de Barros, os queijos vão para maturação. Quanto mais tempo descansam nas prateleiras de madeira, mais picantes, intensos e aromáticos eles ficam. Com dois ou três dias, já seguem viagem para outras prateleiras, as das lojas. E tem fila de espera para provar o queijo de dona Dirse e seu Márcio Martins, que atualmente contam com a ajuda do filho Caik, de 28 anos, na lida da fazenda. O leite é tirado duas vezes por dia, logo cedo e no fim da tarde. São 35 vacas, que garantem uma média de 30 litros diários. "O leite da tarde é essencial na produção, porque ele é mais gordo e garante o gosto do produto", diz Dirse, que é produtora há mais de 20 anos. "Tem hora que nem acredito em tudo que aconteceu. Tem gente que vem do outro lado do mundo para ver como trabalhamos. É muito orgulho", completa.

O premiado Queijo D%u2019Alagoa: diferentemente de outros queijos mineiros, o leite não entra cru na receita. Ele é aquecido a no máximo 50 graus, o que lhe garante um sabor único - Foto: Nereu Jr./DivulgaçãoMas nem sempre foi assim. O queijo D'Alagoa entrou no sensor gastronômico graças à voz de Osvaldo Martins, o Osvaldinho. Ele, que se define como "tropeiro digital", mudou a história da pequena cidade onde nasceu. Em 2009, ainda nos primórdios da internet, o alagoense resolveu vender queijo online. "Acharam que eu era doido", lembra. Apesar de não fazer queijo, ele reuniu um time de produtores e passou a trabalhar como afinador, ou seja, é de sua responsabilidade curar as peças, por prazos que variam de 15 dias a anos. No começo foi difícil. Nos dois primeiros meses, conseguiu despachar apenas três unidades. "Achei foi bom, as pessoas achavam que não ia vender nada", diz. O otimismo e a insistência de Osvaldinho deram frutos. E como! Doze anos depois, ele vende mais de 2 toneladas de queijo de dez diferentes produtores por mês - enviados pelos Correios ou vendidos na loja física, que fica bem no meio da cidade. E Osvaldinho fez escola. Hoje, existem outras lojas por ali, que ajudam a escoar a produção diária de 3,5 toneladas no município. E para quem acha que ele já abriu todas as trilhas possíveis, que nada! Em um futuro não muito distante - a data prevista é 2023 - ele pretende abrir um complexo queijeiro em Alagoa. "Vai ter uma escola, cave subterrânea para maturação, além de um espaço para eventos", revela, enquanto aponta para o terreno que vai receber o novo empreendimento. Osvadinho, o tropeiro digital, é como os tropeiros de séculos passados, não mede esforço para levar as riquezas de Minas cada vez mais longe.
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