Cinco décadas se passaram desde que o Clube da Esquina ganhou a forma arredondada e definitiva de um disco de vinil (dois, aliás), com o lançamento do álbum duplo que faz bodas de ouro neste 2022. A ideia, capitaneada por Milton Nascimento, o cantor-compositor mais mineiro dos cariocas de que se tem notícia, não só gerou uma das obras aclamadas da música brasileira - aqui e no exterior - como também trouxe à tona o talento de jovens artistas, entre eles Lô Borges, coautor do disco, e reuniu um time de músicos de primeira linha.
De Paulo Moura (clarinete) a Eumir Deodato (teclados), de Wagner Tiso (piano) a Robertinho Silva (bateria), o álbum duplo reúne um grupo de 16 artistas, 10 deles mineiros: além de Lô, os letristas Fernando Brant e Márcio Borges; os compositores-cantores-músicos Tavito, Toninho Horta, Beto Guedes, Tavinho Moura; os músicos Nelson Ângelo, Tiso e Rubinho Batera. Dois nomes do time de mineiros já morreram: Fernando Brant (em 2015, aos 68 anos) e Tavito (em 2019, aos 71).
O mais jovem dessa turma, Lô Borges, que tinha 19 anos quando Milton o convidou para fazer o disco Clube da Esquina e estrear na profissão que o consagrou, assina a maioria das melodias e ainda é o intérprete de canções como Trem Azul (letra de Fernando Brant) - que mais tarde ficaria famosa na voz de Elis Regina e também gravada pelo genial Tom Jobim -, Paisagem na Janela (parceria com Ronaldo Bastos) e Um Girassol da Cor de seu Cabelo (parceria com o irmão, Márcio Borges).
A exposição Viagens de Ventania: Trilha Sonora dos Tempos, mistura de imagens e música, foi realizada em fevereiro e março, e a mostra de filmes Mais Fundo que o Mar: O Cinema, a Música e as Esquinas, Centro Cultural Unimed-BH Minas no MTC, ficou em cartaz até 26 de março e exibiu obras como o francês Jules et Jim, de François Truffaut, de 1962. A mostra em homenagem aos 50 anos do CDE marcou ainda a inauguração das duas salas de cinema do espaço.
ENCONTRO - 50 anos depois do disco que deu nome ao movimento, vocês fariam, alguma ressalva/mudança na obra? O que ele significa na sua carreira?
MÁRCIO BORGES - Não mudaria nada. Pediria novamente desculpas por alguns versos que "entraram como pedegrulhos" nos ouvidos de alguns críticos mais sensíveis, mas procuraria torná-los ainda mais pontiagudos. Esse disco significa um momento muito bacana de minha juventude e minha carreira, que começou bem antes dele, e conseguiu seguir em frente algumas décadas mais além.
LÔ BORGES - O CDE me lançou na música, graças ao convite do Bituca (Milton Nascimento), meu mestre e meu irmão. Eu era um compositor iniciante e o Bituca viu que eu levava jeito, e me convidou para dividir um disco com ele, que seria gravado no Rio de Janeiro. A princípio, meus pais não queriam que eu me mudasse para o Rio, no mais sangrento período da ditadura militar, mas eu fui e fizemos juntos o CDE. E não faria nenhuma mudança ou ressalva nesse disco.
A memória do Clube da Esquina é devidamente celebrada, ou falta dar ao movimento a importância que teve e tem na cultura brasileira?
MÁRCIO BORGES - Acho que está tudo de um tamanho merecido. Cada um dá o que tem e recebe a parte que lhe cabe nesse latifúndio. Nada a ressaltar, nem reclamar.
O disco é mesmo a síntese do movimento? Ele acabou indo além do que vocês imaginavam? Alguma curiosidade daquele tempo, em plena ditadura, que marcou?
MÁRCIO BORGES - Sinceramente, não acho aquele disco a síntese de nada, nem nunca teve a intenção de ser. Foi a marca de um momento que não foi o único e nem o mais intenso. A gente não foi um movimento, senão o de jovens artistas em movimento, viajando pelas estradas e interiores do nosso país. A única intenção verbalizada entre nós era a de sermos bonitos, fraternos, revolucionários e originais. Só.
LÔ BORGES - Quando fui para o Rio gravar o CDE, não tínhamos nenhuma pretensão de fazer um disco que desse início a um movimento. Isso acabou acontecendo naturalmente, pelo fato de as pessoas terem gostado dele e principalmente por ele ter passado de uma geração para outra, mantendo sua chama sempre acesa.
A família Borges, numerosa e muito unida, foi fundamental na construção dessa história. Ela gerou múltiplos artistas e isso é muito presente no álbum lançado há 50 anos. Sem ela, como vocês imaginariam a sua trajetória e a criação desse e de outros discos?
MÁRCIO BORGES - Sem aquele encontro com minha família, o Milton brilharia sozinho, pois a estrela dele é difícil, senão impossível, de apagar. Eu seria tipo um professor universitário cinéfilo e bem-falante; o Lô seria um aventureiro, talvez um mochileiro das galáxias. O Fernando , não sei, estaria trabalhando no fórum; o Tavinho Moura seria meu amigo e parceiro, pois a musicalidade dele já chegou em nós pronta - e o resto talvez nunca sequer tivéssemos conhecido.
Que momento da produção do álbum vocês guardam com mais emoção ou alegria? Há alguma música que não entrou nele e que, se pudessem, acrescentariam no disco?
MÁRCIO BORGES - Talvez a primeira audição feita lá em casa, a sala cheia, com todos espalhados pelo chão, ouvindo tudo e chorando de emoção. Acho que colocamos todas as canções que tínhamos prontas naquele álbum duplo.
LÔ BORGES - Eu me lembro de um momento especialmente desafiante para mim, que foi a gravação de Um Girassol da Cor do seu Cabelo. Eu nunca havia gravado nada antes, em estúdio, e naquele tempo os discos eram gravados em apenas dois canais. Se você errasse qualquer coisa, tinha de começar de novo. E nessa música tinha uma orquestra inteira no estúdio, para tocar o arranjo do Eumir Deodato, e o grande Paulo Moura na regência. Eu toquei piano e gravei a voz nessa faixa e essa orquestra completa me acompanhava, sendo que se eu errasse, eu derrubava todo mundo. Mas, eu pensei: não vou errar e vai dar tudo certo! E deu.
Há 10 anos, quando o Clube da Esquina fez 40 anos, foi lançado o livro com esse nome. Teremos mais um livro, agora? Tem algum novo projeto em andamento?
MÁRCIO BORGES - Não sei mais o que cada um anda fazendo. Eu preparei uma exposição no Minas Tênis Clube e fiz a cocuradoria de uma mostra de cinema ligada ao Clube da Esquina, ainda no Minas Tênis Clube.
Com a retomada dos shows ao vivo, podemos esperar alguma novidade ainda na linha da comemoração dessas cinco décadas?
MÁRCIO BORGES - Minha área não é a produção. Eu aceito, ou não, propostas e convites. Por enquanto, recebi umas poucas sondagens.
LÔ BORGES - Sim, junto com o disco Clube da Esquina eu também estou comemorando meus 50 anos de carreira, que prefiro chamar de 50 Anos de Música. Em Belo Horizonte, farei um show no dia 4 de junho, um sábado, no Teatro do Sesc Palladium.
Milton Nascimento é um ídolo nacional e um artista consagrado no exterior. O que você pode dizer sobre a contribuição dele para a história da cultura brasileira?
MÁRCIO BORGES - Nada que eu ainda não tenha dito nesses 60 anos de amizade com ele. Por exemplo, desde 1996 circula meu livro Os Sonhos Não Envelhecem - Histórias do Clube da Esquina, com mais de 350 páginas e nem assim consegui dizer tudo o que sua pergunta abrange.
O Clube da Esquina tem um lugar fundamental na música brasileira e até mesmo reconhecimento internacional. Isso o surpreendeu em algum momento?
MÁRCIO BORGES - Não me surpreendeu, absolutamente. Eu tinha certeza disso, desde antes dele, desde quando o termo "clube da esquina" era apenas uma brincadeira doméstica, ironia criada por minha mãe, que só os meninos sentados naquele pedaço de meio-fio podiam compreender e dar risadas. Que "clube" era aquele!
LÔ BORGES - O que me surpreende até hoje é o reconhecimento internacional desse disco! Ele já foi alvo de vários livros, textos científicos, artigos e reportagens publicados no exterior. Sem falar de vários artistas internacionais que gostam e citam o CDE como um disco de referência, como o Alex Turner, do Arctic Monkeys, o Julian Lennon, e recentemente dois grandes rappers norte-americanos, o Kanye West e o Pharrell Williams.
Há algum artista ou grupo que possa ter sido influenciado pelo Clube da Esquina? O que diriam a ele/ela de sua experiência?
MÁRCIO BORGES - Não ouço ninguém em especial. Nem sei achar direito os streamings e spotifys que eles usam, sou péssimo no Reels, não tenho TikTok e por aí vai. Pode me chamar de alienado. Eu sou isso, da forma mais consciente possível. Para qualquer um eu sempre digo - seja original. Não vale a pena ser autor de obras já feitas por terceiros.
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