Revista Encontro

GASTRONOMIA

Bares e restaurantes de BH se rendem aos drinques com cachaça

Destilado feito com cana-de-açúcar e reconhecido como produto verdadeiramente nacional ganha destaque nas cartas de drinques de estabelecimentos da capital

Carolina Daher
Sócio da Cachaçaria Lamparina, no Mercado Novo, Guilherme Costa e o mixologista da casa Bebeto Coelho: mais de 55 mil drinques vendidos no ano passado ' Marvadeza: cachaça, maracujá, aperol, pimenta dedo-de-moça e gengibre da Cachaçaria Lamparina - Foto: Pádua de Carvalho/Encontro
Durante muitos e muitos anos, o brasileiro conviveu com a síndrome do "patinho feio." Nada feito no país era tão bom quanto o que vinha de fora. Para chegar à raiz do problema, seria preciso voltar alguns séculos, já que essa sensação de inferioridade é resquício de um povo colonizado. Da arte à comida, chique mesmo é que vinha de além das nossas fronteiras. Isso, no entanto, vem mudando. Na gastronomia, na verdade, já mudou. Nossos ingredientes e produtos nunca estiveram tão na moda. A culinária brasileira vem ganhando destaque nos menus de restaurantes badalados. Tucupi, baru, babaçu, cumaru já não são palavras - e sabores - completamente desconhecido para quem gosta de frequentar as mesas de bons estabelecimentos espalhados pela cidade.
Já na coquetelaria, o negócio ainda está caminhando.  A cachaça, destilado feito com cana-de-açúcar reconhecido como produto genuinamente nacional por decreto, e associado no mundo inteiro ao Brasil, ainda hoje enfrenta preconceitos. Começando pelo termo cachaceiro, normalmente usado de forma pejorativa, como se gostar do destilado fosse sinônimo de extrema embriaguez.

Tiago Santos, mixologista de recém-inaugurado Moema, na Savassi: "É uma hipocrisia valorizar só o que vem de fora. Existe sim, um preconceito e a nossa cachaça ainda é marginalizada. Mas estamos mudando isso" | Drinque do Moema, batizado com o nome da casa: notas de lichia, tangerina e limão - Foto: Pádua de Carvalho/Encontro"Eu sou cachaceiro com muito orgulho", diz Guilherme Costa, que, ao lado do sócio Thales Campomizzi, tem mudado o olhar de muita gente sobre o destilado com a sua Cachaçaria Lamparina, no Mercado Novo. Por ali, só entram bebidas de pequenos produtores (atualmente são 16), vindos de várias regiões de Minas. Um jeito que eles encontram de abrir a conversa com o cliente é exatamente valorizando o produto local, mostrando a história de sua origem até a garrafa. "Não adianta a gente falar o que já foi dito. É preciso ter conhecimento para gerar curiosidade e fazer com que pessoa queira experimentar. Sem isso, sem essa formação cultural, estamos sempre enxugando gelo com relação à cachaça", completa. Inaugurada há cerca de 4 anos, a Lamparina - que tem o bar comandado pelo mixologista Bebeto Coelho - tem atraído um público jovem e descolado, que se preocupa com o que consome. Para se ter uma ideia, só no ano passado o bar vendeu cerca de 55 mil drinques - de cachaça, claro. A carta conta com sete preparos, entre eles o tradicional Rabo de Galo (R$ 13), que leva cachaça, melicana, vermute e cynar. Mas o mais pedido de todos, sem dúvida, é o Marvadeza (R$ 18), preparado com cachaça, maracujá, aperol, pimenta dedo-de-moça e gengibre. Guilherme defende que o destilado brasileiro tem um futuro bonito pela frente. "A bebida tem características capazes de mudar a coquetelaria brasileira.
Para se ter uma ideia, são mais de 35 tipos de madeiras usadas para seu envelhecimento. São muitas possibilidades e precisamos valorizar esse potencial gastronômico", afirma.

O chef Caetano Sobrinho resolveu montar um bar com o nome Timbuca, que significa aguardente, cachaça: são mais de 100 rótulos vindos de 70 cidades mineiras | Moscow de Cana e Jabuticaba do Timbuca: cachaça amburana, ginger ale, suco de limão e espuma de jabuticaba - Foto: Pádua de Carvalho/EncontroQuem aplaude o trabalho da Lamparina é o mixologista Tiago Santos, que está no recém-inaugurado Moema, na Savassi. "Eles são responsáveis por popularizar o consumo de drinques à base de cachaça entre o público mais jovem", diz. Assim como Gabriel e Thales, Thiago vem há mais de uma década insistindo em colocar bons coquetéis preparados com o destilado brasileiro nas cartas que monta. "É uma hipocrisia valorizar só o que vem de fora. Existe, sim, um preconceito e a nossa cachaça ainda é marginalizada. Mas estamos mudando isso". No Moema, são 25 possibilidades de drinques, sendo cinco preparados com cachaça. O destaque fica por conta do que leva o nome da casa e é feito com notas de lichia, tangerina e limão (RS 24,90). Tiago é também é quem assina a carta do Timbuca, do chef Caetano Sobrinho, localizado nos fundos de um posto de gasolina na Afonso Pena.
Para começo de conversa, a palavra timbuca é sinônimo de cachaça, sendo assim, nada mais lógico do que ser um espaço em que "marvada" é protagonista. "Quando o Via Cristina fechou, todos nós ficamos um pouco carentes, sem ter um local para beber boas cachaças", diz Caetano, referindo-se ao bar que ostentava um acervo de mais de 900 rótulos e que fechou em 2017. Foi assim que surgiu a ideia de ter um boteco que fizesse uma homenagem a essa bebida tão apreciada pelos mineiros. Uma grande estante ostenta mais de 100 rótulos, vindos de 70 cidades do estado. Na carta de drinques, 90% dos preparos levam a bebida. Entre os mais pedidos estão o Bezentacil, mistura de cachaça amburana, whisky nimbus, mel, limão e gengibre (R$ 32) e Moscow de Cana e Jabuticaba, feito com cachaça amburana, ginger ale, suco de limão e espuma de jabuticaba (R$ 31).

Marco Aurélio Veloso Teixeira, sócio do Jirau, não acreditou muito quando o mixologista sugeriu um drinque com cachaça: hoje, é um dos mais pedidos da casa | Caipijirau: melado de cana, hortelã e gengibre - Foto: Pádua de Carvalho/EncontroSócio do Jirau, gastrobar localizado em Lourdes, Marco Aurélio Veloso Teixeira não botou muita fé quando o mixologista Samurai propôs colocar um drinque de cachaça na carta, além das tradicionais caipirinhas servidas na casa com limão, morango, maracujá e abacaxi (R$ 30). Pois bem, o caipijirau, preparado com melado de cana, hortelã e gengibre (R$ 30) é um dos grandes xodós dos clientes que frequentam o happy hour da casa, que acontece de terça a sexta das 18h às 20h. "É surpreendente, porque todo mundo que experimenta volta para tomar novamente", diz Marco.

Diretor criativo do Ofélia, Bruce Laviola acredita na versatilidade da cachaça: no bar, ela aparece na carta de drinques e também no cardápio, no sanduíche de copa lombo reduzido na bebida | Imperatriz, do Ofélia: cachaça envelhecida em carvalho, limão siciliano, vermute bianco, geleia de rosas vermelhas e espumante - Foto: DivulgaçãoOutros bares conhecidos por suas cartas de drinques bem elaboradas também têm investido na aguardente nacional. Detalhe: aguardente é um termo genérico para caracterizar bebidas destiladas, como rum e conhaque. A palavra vem de vuurwater ou acque ardentes, significando água com fogo. Um deles é o Ofélia, no Santa Efigênia. "A procura tem crescido a cada dia. Temos que desmistificar esse preconceito de que a cachaça é um destilado menos nobre. Muito pelo contrário, é um produto nosso, muito rico e que pode ser usado de diferentes formas", diz o diretor criativo Bruce Laviola. A carta com 22 drinques, inspirados nas cartas de Tarot, oferece o Imperatriz, preparado com cachaça envelhecida em carvalho, limão siciliano, vermute bianco, geleia de rosas vermelhas e espumante (R$ 28). "Cachaça com espumante? Sim e fica incrível", garante Bruce. Sobre a diversidade do produto, ele conta que a bebida aparece também no cardápio. No Katsu Sando, sanduíche de copa lombo com redução de cachaça, picles de maxixe e maionese defumada no pão de leite (R$ 41,90). Novo no mercado, o Madame Geneva, no Luxemburgo, já virou em pouco tempo reduto dos mais modernos e descolados da cidade. Por lá, quem comanda o bar é a sommelier Naronne Sabba. É dela a criação, por exemplo, do Agojie, preparado com bitter de laranja, gelado de banana com coco, suco de limão, açúcar e cachaça infusionada com uva roxa (R$ 35). O nome é em homenagem às guerreiras do filme Mulher Rei. "A cachaça carrega uma história secular. Inclusive, foi proibida de ser produzida e consumida pela Coroa Portuguesa durante o período colonial", lembra. "Nessa época, temos relatos que uma pessoa escravizada valia 56 litros de cachaça. A bebida passou a ser usada como mercadoria para escambo de escravos na África", completa. Um dos maiores diferenciais do Madame é que lá os clientes também encontram as famosas "garrafadas." "É o encontro do destilado com as ervas medicinais, que tanto fazem sucesso no interior do país. Aqui chamamos de elixir da vida", completa Naronne. E eles podem aparecer tanto na confecção de um drinque como para ser tomado em dose. Agora, nesse momento, em uma garrafa de aguardente mineira, a mixologista está preparando uma "garrafada" com cardamomo, zimbro e canela. "Daqui uma semana estará prontinho para ser consumido."

Naronne Sabba, mixologista do Madame Geneva: além de drinques, ela prepara as famosas "garrafadas", de cachaça infusionada com ervas, frutas e especiarias | Agojie, do Madame Geneva: bitter de laranja, gelado de banana com coco, suco de limão, açúcar e cachaça infusionada com uva roxa - Foto: Lucas Benigno/DivulgaçãoManoel Beato, sommelier do Grupo Fasano, também entra no clube dos fãs do mais famoso destilado brasileiro. E ele tem uma explicação para quem ainda carrega um certo preconceito sobre a cachaça. "Há 30 anos atrás, existiam poucos bons produtores de cachaça. Ou seja, estamos em plena evolução. Hoje, temos muitos produtos de alto nível", diz. Ele faz o comparativo do que aconteceu com o vinho branco. "Durante muito tempo, algumas pessoas não gostavam de vinho branco, porque realmente eram de qualidade muito inferior ao tinto. E isso mudou. Temos excelentes brancos que fizeram com que os consumidores revissem seus conceitos", completa. Manoel acredita que cachaça é uma ferramenta fundamental para a construção da identidade da coquetelaria brasileira - e que isso já vem acontecendo em muitos estabelecimentos pelo país afora. "O que falta é as pessoas conhecerem mais profundamente o produto. Mas tenho vários conhecidos, grandes colecionadores de vinhos, que também têm suas coleções de cachaça", finaliza. No Fasano de Minas, assim como em São Paulo, a clientela já conta com um menu de cachaças com mais de 20 rótulos. Na carta de drinques do Baretto, além das tradicionais caipirinhas, o Very Fasano (R$ 46) faz sucesso: cachaça, suco de cramberry, suco de abacaxi, sumo de limão e xarope de açúcar. Definitivamente, a cachaça é coisa nossa. E mais, é democrática e, sem dúvida, bem-vinda em qualquer salão.

Manoel Beato, sommelier do Grupo Fasano: "Há 30 anos atrás, existiam poucos bons produtores de cachaça. Ou seja, estamos em plena evolução. Hoje, temos muitos produtos de alto nível" | Very Fasano, na carta do Baretto: cachaça, suco de cramberry, suco de abacaxi, sumo de limão e xarope de açúcar - Foto: DivulgaçãoHistória da cachaça

A cachaça é um dos destilados mais antigos do mundo. Foi lá em 1504 que as primeiras mudas de cana-de-açúcar foram plantadas em solo brasileiro pelos portugueses. Mesmo com poucos registros o que faz ser impossível afirmar com segurança onde foi produzida a primeira pinga, o historiador e folclorista Luís Câmara Cascudo acredita ter sido em São Vicente, no litoral de São Paulo. Durante a Inconfidência Mineira, a cachaça se tornou um símbolo de brasilidade entre os separatistas. Com o fim do movimento libertário, a bebida voltou a ser considerada pouco nobre, conceito reforçado com a vinda da Corte portuguesa para o país no século XIX. Essa visão só começou a mudar em 1922, quando os modernistas elegeram a cachaça como um dos símbolos verde-amarelo. Mas foi só em 1997 que o então presidente Fernando Henrique Cardoso aprovou uma lei instituindo a cachaça como um produto verdadeiramente brasileiro.
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