Revista Encontro

SAÚDE

Infectologista Carlos Starling fala sobre a epidemia de dengue no Brasil

O médico, especialista em medicina preventiva e social, diz que o país deve chegar a 4 milhões de casos da doença em 2024

Isabela de Oliveira
- Foto: James Gathany/Wikimedia Commons
Vice-presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, Carlos Starling compartilha uma perspectiva crítica sobre a proliferação da dengue e outras arboviroses no Brasil. Em um país assolado por números alarmantes divulgados pelo Ministério da Saúde, que apontam para mais de meio milhão de casos prováveis de dengue e dezenas de mortes confirmadas, Starling traz uma análise reflexiva que requer atenção dos mineiros: segundo dados do Painel de Monitoramento das Arboviroses, Minas Gerais é o estado com o maior número de casos prováveis, com quase 200 mil até meados de fevereiro. O especialista destaca deficiências na abordagem convencional de combate às doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, que frequentemente se baseiam em responsabilizar a população e em soluções simplistas e temporárias. Em sua análise, a desigualdade social e a falta de infraestrutura são cruciais para a propagação dessas enfermidades, com influência direta da falta de intervenção do Estado em áreas vulneráveis. Para Starling, investimentos em educação, pesquisa científica e desenvolvimento de vacinas são medidas eficientes no enfrentamento dessa crise de saúde pública. Ele ressalta ainda a importância de uma abordagem integrada e tecnológica no combate ao vetor, bem como a modernização dos sistemas de vigilância epidemiológica.

O infectologista Carlos Starling - Foto: Geraldo Goulart/Encontro/ArquivoAo longo desta entrevista à Encontro, o autor do livro Tempo sem Tempo (Editora Autêntica, 2023) lança luz sobre questões cruciais, como maior suscetibilidade das mulheres à infecção, a escolha da faixa etária prioritária para a vacinação pelo Sistema Único de Saúde (SUS), os possíveis efeitos colaterais da vacina, a necessidade de expansão da imunização para outras localidades e grupos populacionais, além de apontar para a urgência de medidas mais abrangentes por parte do poder público.

1) São tantos casos de dengue, que a população às vezes parece ter ficado dessensibilizada quanto ao risco da doença. É uma doença grave, ela pode matar? Em que casos?

São mais de 40 anos com surtos epidêmicos acontecendo entre dezembro e maio, com casos esporádicos ao longo do ano. Isso significa que as condições determinantes para que essa situação epidemiológica se mantivesse não mudaram.
Significa, também, que as estratégias utilizadas nesse longo período não contiveram o mosquito. Isso dá à população a falsa ideia de que ter dengue é normal e sem consequências. Muito pelo contrário, a dengue é uma doença com elevado potencial de gravidade. Em 2023, tivemos um recorde de mortes por essa doença, gerando enormes prejuízos econômicos para toda sociedade.

2) Já podemos dizer que estamos em uma epidemia de dengue? Ou o cenário é pior que o de uma epidemia?

Estamos em um momento epidêmico que ainda não chegou ao pico do número de casos. As projeções epidemiológicas para este ano são que teremos mais de 4 milhões de casos.

3) Segundo o Painel de Monitoramento do Ministério da Saúde, a população feminina representa 54,9% dos casos, enquanto pessoas do sexo masculino somam 45,1%. Mais de 143,2 mil dos casos prováveis estão concentrados na população entre 30 e 49 anos. Por que mulheres e pessoas entre 30 e 49 anos têm sido mais afetadas, na sua avaliação?

As mulheres em idade fértil durante o período de ovulação e principalmente as grávidas tem uma temperatura média mais elevada que a dos homens. Além disso, as grávidas eliminam mais gás carbônico durante a respiração. Tanto a temperatura mais elevada, quanto a maior eliminação CO2 e alteração no teor do suor sobre a pele, influenciado por fatores hormonais, são fatores que atraem mais o Aedes. Esses são alguns fatores que podem justificar essa diferença de incidência entre homens e mulheres. Sabendo disso, em períodos epidêmicos as mulheres, em especial as grávidas, devem se proteger de forma cuidadosa, usando repelentes e roupas com maior cobertura, principalmente das pernas.

4) E sobre as pessoas de 30 e 49 anos?

Esse grupo corresponde à parcela da população economicamente ativa e com maior mobilidade e exposição ao mosquito em diferentes ambientes. Cabe salientar a importância das pessoas lembrarem de usar repelente tanto em casa, quanto quando forem sair de casa para o trabalho.

5) O SUS liberou a vacina em algumas cidades, para quem tem entre 10 e 14 anos. Por que essa faixa etária foi escolhida se, de acordo com esse último levantamento, quem tem 30 e 49 anos tem sido mais afetado?

Os dados que serviram para os critérios usados pelo Ministério da Saúde foram de todo ano de 2023.
Além disso, essa faixa etária apresentou um elevado índice de complicações e é constituída por um número de pessoas que poderia ser coberto pelo número de vacinas disponíveis nesse momento. Assim que a produção e fornecimento da vacina for aumentando, as outras faixas etárias serão progressivamente incorporadas.

6) Sobre o nível de segurança da vacina, o que os estudos indicam até agora? Tem efeitos colaterais? Como reagimos a ela? E porque a vacina no SUS só foi disponibilizada este ano?

A administração da vacina é feita por via subcutânea, em um esquema de duas doses, com um intervalo de três meses entre as aplicações. Pessoas de 4 a 60 anos de ambos os sexos são a população alvo para a vacinação. A vacina é contra indicada para gestantes e mulheres amamentando. Os efeitos colaterais são comuns às vacinas de vírus vivo atenuada e podem ocorrer em cerca de 1 a 10% dos pacientes. As reações mais frequentes foram leves – febre, dor de cabeça, dor no local da injeção, mal-estar e dor muscular. Outras reações comuns foram reações no local da injeção, como vermelhidão, hematoma, inchaço e coceira. A incorporação da vacina pelo SUS foi feita após a conclusão dos estudos clínicos e aprovação pela Anvisa. Esse processo ocorreu apenas no final de 2023. Não havia qualquer possibilidade de incorporá-la antes.
Mesmo sendo incorporada pelo SUS, o fabricante não dispõe de capacidade de produção suficiente para abastecer o mercado brasileiro de imediato. O que fez com que o Ministério da Saúde estabelecesse critérios para início da vacinação.

7) Outras faixas etárias podem recorrer a clínicas privadas. Quem deveria priorizar a vacinação?

As clínicas privadas receberam, à princípio, uma certa quantidade de vacinas. Entretanto, a partir do momento que a vacina foi incorporada ao Programa Nacional de imunizações e estabelecidos critérios de prioridade para cobertura populacional ampla, o Laboratório Takeda, produtor da vacina, emitiu um comunicado interrompendo o fornecimento para as clínicas privadas. Dessa forma, pelo menos no momento, todo estoque disponível será destinado ao SUS. Na medida que a capacidade de produção e entrega das vacinas for aumentando, certamente as clínicas privadas voltarão a receber lotes da vacina. Hoje, a vacina está liberada pela ANVISA para pessoas entre 4 e 60 anos, correspondendo à faixa etária cujos estudos clínicos foram concluídos e demonstraram eficácia e segurança. Os estudos continuam fora dessa faixa etária e em breve a vacinação deve ser liberada para crianças abaixo de 4 anos e adultos acima de 60 anos, abrangendo grupos etários com alto índice de complicações pela doença. Por enquanto, a aplicação nessa população é considerada off label, ou seja, fora dos padrões previamente estudados. Não é proibido, mas não se pode garantir segurança e eficácia com precisão estatística.

8) Quem já teve dengue precisa se preocupar mais?

Sim. A reinfecção por um sorogrupo diferente daquele que a pessoa foi previamente infectada, pode gerar uma resposta imunológica ampliada, a qual tem maior probabilidade de causar quadros clínicos mais graves. Portanto, pessoas que já foram infectadas devem se proteger usando repelente, controlando os focos do mosquito dentro ou próximo de onde moram, ou trabalham. No momento que a vacinação for liberada para a sua faixa etária, você deve se vacinar o quanto antes.

9) O Poder Público poderia tomar outras atitudes, como intensificar fiscalização? Quais o senhor acha fundamentais?

Dengue e outras arboviroses são doenças intimamente relacionadas às condições de vida das pessoas, ao grau de organização da sociedade, distribuição de riqueza e acesso a bens e serviços públicos. Portanto, apesar do mosquito transmissor se dispersar amplamente, quanto mais concentrada for a densidade populacional e pior for a condição sanitária, maior o risco de ocorrência de surtos e epidemias. Sabemos que a imensa maioria dos criadouros de Aedes encontra-se dentro ou próximo à casa das pessoas. Porém, a maioria das pessoas não escolhe viver onde vive. Elas vivem onde os seus recursos permitem que vivam. Dessa forma, a ausência do Estado em uma determinada região, caracterizada por falta de saneamento e coleta regular e adequada de lixo, desemprego, condições inadequadas de moradia, favorece criadouros do mosquito transmissor e a manutenção da doença ao longo do tempo. O caos social e urbano favorece, além da perpetuação de doenças, o aumento da criminalidade e a proliferação de igrejas, que ocupam o espaço vazio deixado pelo Estado. Não é por acaso que dengue e outras mazelas sociais fazem parte da nossa vida por tantos anos.

10) Dá para competir com o mosquito de igual para igual?

Em termos de presença no planeta e adaptabilidade ao ambiente, ele tem 130 milhões de anos à nossa frente. Além disso, as mudanças climáticas na sua maioria favorecem a proliferação. Portanto, combatê-lo exige investimento em ciência e pesquisa de ponta. Precisamos de vacinas cada vez mais eficazes contra os quatro tipos de vírus, seguras e preferencialmente de dose única. Mosquitos modificados geneticamente e colonizados com a bactéria Wolbachia são estratégias modernas e altamente promissoras, que independem de mudanças estruturais da sociedade para serem bem sucedidas. Portanto, trata-se de um problema complexo que exige intervenções multimodais para termos melhores chances de enfrentar o Aedes e as múltiplas doenças transmitidas por ele.
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