Estado de Minas ENTREVISTA

Promotora de Justiça explica os desafios na implementação do direito animal

Luciana Imaculada de Paula está à frente da Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (CEDA) desde 2017


postado em 29/07/2024 12:16

(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Em 2023, a promotora de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais Luciana Imaculada de Paula recebeu o Grande Colar do Mérito Legislativo, maior honraria concedida pela Câmara Municipal de Belo Horizonte. A homenagem foi pela tarefa de defender o tão polêmico "Direito Animal". À frente da Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (CEDA) - única no Brasil -, ela recebe as mais diversas demandas, vindas de todo o estado, a maioria delas relacionadas ao crime de maus-tratos. Em um país onde os animais ainda figuram no código civil como "bens móveis" e não "sujeitos de direito", cabe a ela fortalecer e integrar a atuação dos promotores de Justiça na defesa dos animais "como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus à tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, como forma de garantir o seu bem-estar". "Isso deve se estender a todos os animais, sejam eles de estimação, domésticos ou selvagens", afirma Luciana. Em entrevista a Encontro, ela fala sobre seu trabalho na coordenadoria.

  • Quem é: Luciana Imaculada de Paula

  • Origem: Alpinopolis (MG)

  • Formação: Graduada em Direito pela Fundação de Ensino Superior de Passos, da Universidade Estadual de Minas Gerais (FESP/UEMG), é mestre em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e doutora em Ciências Animais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • Carreira: Atuou como Procuradora Federal, carreira da Advocacia-Geral da União (AGU), em Novo Hamburgo/RS. Desde 2003 é Promotora de Justiça no Ministério Público de Minas Gerais, tendo sido titular nas Comarcas de Guaxupé e de Formiga. Foi coordenadora regional das Promotorias de Defesa do Meio Ambiente do Rio das Velhas e Paraopebas e da região do Alto São Francisco. Desde 2017 responde pela Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (CEDA/MPMG).

Encontro - Quando a Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (Ceda) foi criada em MG e quando a senhora assumiu a o grupo?

Luciana Imaculada de Paula - O Grupo Especial de Defesa da Fauna (Gedef) foi criado em 2011 e transformado em Coordenadoria em 2017, período em que assumi a sua gestão. Em  novembro de 2021 passou a ser denominado Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (Ceda), ganhando força e contando com estrutura própria para atuar com exclusividade. A Coordenadoria integra a estrutura do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Histórico e Cultural, Habitação e Urbanismo (CAO-MA) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Partiu da tentativa de entender a demanda institucional e estimular a atuação dos promotores de Justiça na defesa animal como um todo. Nesse contexto, surgiu a Ceda que considera a defesa tanto do conjunto denominado fauna, quanto do animal em si mesmo, considerado em sua dignidade própria.

Sabemos que tanto nos órgãos públicos quanto na sociedade civil, o reconhecimento dos direitos dos animais ainda é um assunto delicado e, muitas vezes, desrespeitado. Em sua opinião, o que contribuiu para a criação do Ceda em MG?

Entre outros fatores, houve uma movimentação grande dos protetores de animais em Minas Gerais junto ao Ministério Público, para que houvesse uma coordenadoria específica para a causa. Foram apresentados pedidos formais por meio de abaixo-assinados e essa mobilização resultou na interação do MP com a sociedade civil para tornar a demanda possível. A Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (Ceda) tem a missão de fortalecer e integrar a atuação dos Promotores de Justiça na defesa dos animais como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus à tutela jurisdicional em caso de violação de seus direitos, como forma de garantir o seu bem-estar, sempre em parceria com os órgãos públicos e com a sociedade civil. Temos a tradição de realizar seminários anuais para discutir sobre possíveis soluções, inclusive junto aos gestores dos municípios.

Em 2023, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) realizou fiscalização no Mercado Central de BH para verificação das condições em que são mantidos os animais expostos e comercializados no local. Qual o saldo final da empreitada?

Existe uma ação civil pública proposta pelo MPMG através das promotorias de Saúde, Meio Ambiente e Consumidor, que tramita já há alguns anos e pede a finalização desse comércio. Ouso dizer que todas as instituições públicas que atuam na defesa dos animais já se manifestaram no sentido de que os animais são submetidos a maus-tratos no Mercado Central. Um dos principais fundamentos se baseia em uma lei municipal que proíbe o comércio de animais vivos onde se vendem alimentos para seres humanos, devido à incompatibilidade sanitária.  Na última operação realizada, quase 800 animais foram apreendidos em situação de maus-tratos. Dos cães e gatos, praticamente todos morreram de doenças tratáveis, devido à contaminação existente no local. As repercussões dessa operação serão trazidas para a esfera administrativa, a cargo da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) e para a esfera criminal, após a finalização dos laudos periciais realizados. Depende da justiça e do executivo municipal, fazer cumprir a lei e determinar o fim desse comércio.

"Ouso dizer que todas as instituições públicas que atuam na defesa dos animais já se manifestaram no sentido de que os animais são submetidos a maus-tratos no Mercado Central de Belo Horizonte"

Luciana Imacula de Paula, promotora de Justiça

Acordo firmado entre o MPMG, a prefeitura e a associação dos charreteiros em Tiradentes prevê a transição dos modelos de tração animal por elétricos. O que prevê esse acordo?

Houve uma propositura de ação civil pública pelo Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal, a qual o promotor de Tiradentes nos solicitou uma ação conjunta. Tendo em vista que é uma atividade que ocorre há muitos anos na cidade e que cerca de 30 famílias ainda dependem dela para subsistência, entendemos que seria viável um acordo envolvendo o município e a Associação de Charreteiros. Já foi comprovado via perícias que os animais são submetidos a longas horas de trabalho e que, em muitos casos, resultam em maus-tratos. Com o apoio do Instituto Arbo e custeado pela Plataforma Semente, o próximo passo será fazer a substituição gradual dos cavalos por veículos de tração elétrica. Posteriormente, os animais  serão destinados pela Semad para adoção responsável.

Recentemente, o Instituto Arbo, com apoio da Plataforma Semente, da Ceda-MG e da Coordenadoria de Meio Ambiente do MPMG, lançou o filme "Cativeiro", com o objetivo de despertar a reflexão sobre o crime de tráfico de animais silvestres. Como o MPMG atua para modificar esse cenário?

O tráfico de animais silvestres está entre as três atividades ilícitas mais rentáveis do planeta, atrás apenas do tráfico de drogas e de armas. O hábito de parte da população de considerar que animal silvestre pode ser animal de estimação acaba alimentando várias organizações criminosas. O animal que foi retirado da natureza para viver na residência de alguém passou por todo um processo de sofrimento, desde a sua captura e retirada de seu habitat natural, ao manejo e transporte inadequados. Estima-se que 90% desses animais não sobrevivem, o que gera um impacto imenso na biodiversidade.  O filme "Cativeiro", custeado via Plataforma Semente, vem para mostrar essa realidade. Voltado para um público segmentado do ensino fundamental 2, utiliza a realidade virtual para fazer com que o espectador se veja no lugar  do animal capturado e se torne multiplicador dessa mensagem. A divulgação terá início na Comarca de Ibirité e depois, através do MP Itinerante, em cidades mais distantes da capital, para, por fim, ser apresentado na região metropolitana.

Aprovada em 2020, a Lei Federal (14.064/2020), conhecida como Lei Sansão,  inclui um capítulo para cães e gatos na, já existente, Lei de Crimes Ambientais. Contudo, na prática, existe uma enorme dificuldade de acionar as autoridades responsáveis para atender a essa demanda. Como isso pode ser melhorado?

Uma das maiores dificuldades que enfrentamos é a implementação das leis. Apesar disso, Minas é pioneira na proteção animal. A Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (CEda) é a única no Brasil. Segundo dados do Disque Denúncia 181, o crime de maus-tratos aos animais é o segundo mais reportado perdendo apenas para o tráfico de drogas. Então o volume de notícia crime que chega às autoridades em MG é muito grande e, apesar da urgência da situação, de fato, existe uma dificuldade de atendimento. A PM muitas vezes não tem efetivo especializado na cidade e não sabe como atuar. Mas o mau-trato aos animais é crime e o cidadão tem as portas abertas para procurar ajuda, seja por meio do MP, da Polícia Militar, e dos órgãos de fiscalização como o IBAMA, IEF, Semad.

As leis de proteção dos animais de estimação, a exemplo dos cães e gatos, têm avançado. Contudo,  pouco se fala sobre a proteção de animais domésticos e usados para consumo, tais como bois, vacas, galinhas e porcos. O que tem sido feito para garantir o bem-estar desses animais?

Em nosso código civil, os animais ainda são tidos como "bens móveis" e não figuram como sujeitos de direito. Mas, é claro que sabemos que os animais não se assemelham a objetos, a exemplo de uma cadeira. São seres sencientes e entender como eles podem sofrer e quais emoções experimentam é fundamental para melhorar o seu bem-estar, a legislação e as práticas que os afetam. O que se estende a todos os animais, sejam eles de estimação, domésticos ou selvagens. O termo "esquizofrenia especista", usado por um filósofo americano, diz que ao mesmo tempo em que reconhecemos a necessidade de proteger um pet, somos indiferentes ao sofrimento de outro animal por não estar na mesma categoria, o que é uma realidade. No novo código civil há avanços, com reconhecimento da sensibilidade animal, remetendo a uma futura regulamentação. Penso que deveria haver também um tratamento ético para as espécies que servem de alimento para os seres humanos o que, inclusive, pode ser exigido das empresas por consumidores mais conscientes sobre a origem do alimento que consomem e sua relação com o sofrimento animal.

Outro assunto polêmico e recorrente é a existência de criadouros clandestinos onde fêmeas são utilizadas como matrizes para a retirada de filhotes que são destinados à venda. A maioria desses animais são mantidos presos em gaiolas e sem alimentação e assistência veterinária adequados. Existe alguma iniciativa para coibir a prática?

A Lei Estadual 21.970 regulamenta a prática, cabendo ao responsável informar sobre a  procedência, a espécie, a raça, o sexo e a idade real ou estimada dos animais comercializados, além de determinar que apenas animais devidamente vacinados e vermifugados sejam destinados à venda, sendo obrigatório orientar sobre a guarda responsável para que o animal tenha suas  necessidades físicas, psicológicas e ambientais respeitadas. A atividade também deveria ser autorizada pelo município via alvará. No entanto, a lei não tem sido implementada pelos municípios, o que resulta na exploração das fêmeas dessas espécies que são mantidas como matrizes reprodutoras de filhotes, muitas vezes, em situações desumanas. Atualmente, o Projeto de Lei (PL) 2.169/15 dispõe sobre a comercialização adequada de animais, mas também sobre a criação para fins de reprodução. O texto prevê a  criação do Cadastro Estadual de Criação e Comércio de Cães e Gatos de Raça de Minas Gerais (Cecar-MG), a ser regulamentado pelo Poder Executivo. Os criadores deverão registrar cada animal e a cada um corresponderá um número de Registro Geral Animal (RGA). É importante ressaltar que a decisão das pessoas na compra de animais de raça por um padrão estético alimenta todo esse processo de exploração animal.

Já se sabe que o uso de fogos de artifício com barulho causa sofrimento a humanos e em animais. E mesmo já tendo sido proibido em alguns municípios mineiros, a prática segue sendo adotada. Em sua opinião,  o que falta para que  os fogos com barulho sejam proibidos definitivamente no estado?

Alguns municípios mineiros têm criado leis proibindo o uso de fogos de artifício ruidosos, o que já é um grande avanço. Então já existe uma conscientização sobre os males provocados, especialmente em idosos, doentes, autistas, entre outros. Nos animais, muitos chegam a ter convulsões e a sofrer parada cardíaca em consequência do pânico causado pelos estouros. Outros fogem e terminam morrendo atropelados e até enforcados, quando presos a correntes.  Mais uma vez, o grande desafio tem sido a implementação das leis para que sejam cumpridas. Na Paraíba, acabou de ser aprovada uma lei que traz um mecanismo de fiscalização que cria as infrações administrativas, proíbe a venda e norteia a ação do executivo, facilitando essa aplicação. Mas do que isso, é preciso que a população se conscientize sobre como suas ações afetam os demais.

Em 2008, a Lei Arouca surgiu com  o intuito de impor limites nos procedimentos e no uso de animais em estudos científicos, garantindo o mínimo de conforto e higiene nos cativeiros e amparando os animais em caso de abusos e maus-tratos. Como a senhora avalia a questão?

Existe uma discussão ética a respeito e uma tendência de redução com o advento da inteligência artificial, especialmente na fabricação de cosméticos e produtos que não são essenciais. Na indústria farmacêutica ainda se alega a necessidade do uso em animais para teste, o que também pode ser reduzido. E para além do sofrimento gerado a outras espécies em benefício do ser humano, há também o conflito de saber até que ponto um medicamento testado em animal é seguro em pessoas, a exemplo da Talidomida. Desde a sua primeira edição, em 1975, o  Livro Libertação Animal, de Peter Singer,  vem conscientizando milhões de pessoas sobre a maneira como o ser humano trata os animais, expondo a terrível realidade da indústria pecuária e dos testes de laboratório que, segundo ele, em sua grande maioria, são  inúteis. A Lei Arouca traz padrões éticos para esse uso e esperamos que essa tendência seja crescente.

"Não precisamos esperar outra pandemia para ampliar o nosso olhar e entender que o ser humano está diretamente conectado com as outras espécies animais"

Luciana Imacula de Paula, promotora de Justiça

O que a senhora acredita ser necessário para acabar com os maus-tratos aos animais?

É preciso que a população e o poder público compreendam a gravidade da situação e não menosprezem o problema. Recentemente passamos por uma pandemia mundial causada por essa proximidade dos seres humanos com os animais selvagens. Acabamos de lançar uma cartilha sobre o manejo de carnívoros em áreas urbanas, porque, cada vez mais, os animais têm perdido o seu habitat natural e migrado para as cidades. O abandono de animais domésticos como cães e gatos tem aumentado a incidência de zoonoses, que são doenças transmitidas aos seres humanos, a exemplo da leishmaniose visceral canina e da esporotricose em gatos. Não precisamos esperar outra pandemia para ampliar o nosso olhar e entender que o ser humano está diretamente conectado com as outras espécies animais.

Conforme as previsões da Lei Federal 13.426/2017 e da Lei Estadual 21.970/2016 cabe aos municípios realizar a implementação de políticas públicas voltadas para o controle populacional de cães e gatos em área urbana. No entanto, grande parte dos municípios mineiros não cumpre o que a lei define. Como o MPMG tem agido para que essa realidade seja modificada?

O Prodevida é uma iniciativa da Ceda-MG que apoia os municípios mineiros a darem cumprimento às previsões das leis. Ajudamos a buscar recurso financeiro através do fundo do MP, da Plataforma Semente e de emendas parlamentares. O programa atua em consórcios para favorecer a integração dos municípios de uma mesma região que passam a fazer uso compartilhado de um Castramóvel. A adesão ao programa é voluntária e realizada por meio da assinatura de um termo de compromisso com o Ministério Público local. Mais de 300 municípios mineiros já aderiram ao projeto.

Em janeiro de 2023, a senhora recebeu o Grande Colar do Mérito Legislativo, maior honraria concedida pela Câmara Municipal de Belo Horizonte, devido ao seu trabalho à frente da Coordenadoria Estadual da Defesa dos Animais (Ceda). O que a motiva a lutar pelos animais?

Desde criança eu sempre gostei muito dos animais, mas o start para a causa animal começou quando eu atuava como coordenadora da área ambiental em Divinópolis. O MPMG tem uma estrutura bem completa de defesa do meio ambiente e cada bacia hidrográfica tem o seu coordenador. Na época, eu coordenava a bacia do Alto São Francisco e comecei a fiscalizar abatedouros na região centro-oeste, em uma parceria com o Instituto Mineiro de Agropecuária. Quando eu recebi os relatórios, achei tão pesada a história daqueles animais usados para consumo que, pela primeira vez, associei o que estava no meu prato ao sofrimento daquelas vidas não humanas. Foi quando decidi parar de comer carne. Por coincidência, havia uma pequena biblioteca no gabinete onde eu trabalhava, em que havia um livro da doutora Edna Cardozo Dias,  advogada e professora cuja tese de doutorado em direito foi a primeira voltada para a defesa dos animais na UFMG. Ela foi pioneira na luta pela ampliação de direitos fundamentais para além da espécie humana. Isso ampliou ainda mais a minha percepção e me levou a me aprofundar no direito animal.

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