Estado de Minas SAÚDE

"Outubro Rosa deveria ser o ano inteiro", diz especialista

Médica responsável pelo Oncoclínicas Mulher fala sobre o baixo rastreio do câncer de mama no país e outros avanços no combate à doença que mais mata mulheres


postado em 28/10/2024 13:56 / atualizado em 28/10/2024 13:57

A médica Angélica Nogueira-Rodrigues, pós-doutora em Oncologia pela Harvard University, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e responsável pelo Oncoclínicas Mulher(foto: Caroline Castella/Divulgação)
A médica Angélica Nogueira-Rodrigues, pós-doutora em Oncologia pela Harvard University, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e responsável pelo Oncoclínicas Mulher (foto: Caroline Castella/Divulgação)
Nos anos 1990, uma pequena ação nos EUA se transformaria no que hoje conhecemos como Outubro Rosa, mês dedicado ao combate e prevenção do câncer de mama. Na época, a Fundação Susan G. Komen for the Cure, em Dallas, Texas, lançou a primeira Corrida pela Cura. Laços cor-de-rosa foram distribuídos a participantes que, sem saber, tornariam-se embaixadores de uma causa global.

Mais de 30 anos se passaram, e o câncer de mama, apesar dos avanços, segue como a doença que mais mata mulheres no mundo. Para trazer aos nossos leitores o que há de mais moderno em diagnóstico e tratamento, e falar sobre os desafios que ainda impedem a redução da doença, a Encontro conversou com Angélica Nogueira-Rodrigues, pós-doutora em Oncologia pela Harvard University, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e responsável pelo Oncoclínicas Mulher.

Além de idealizar o Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG), Angélica atua como ChairGyn no Latin American Cooperative Oncology Group e é fundadora da DOM Oncologia. Recentemente, foi eleita presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), um reconhecimento de sua liderança e contribuição significativa na área.

Nesta entrevista, a especialista compartilha insights valiosos sobre as mais recentes inovações no tratamento e diagnóstico do câncer de mama, como o uso de Antibody Drug Conjugates (ADCs) e tecnologias avançadas de imagem. E destaca a necessidade urgente de aumentar a adesão ao programa público de rastreio para garantir diagnósticos precoces e, assim, aumentar as chances de cura.

Angélica também discute o estigma que ainda envolve o câncer de mama, um obstáculo que pode dificultar a busca por tratamento e apoio.

  • Quem é: Angélica Nogueira-Rodrigues

  • Origem: Belo Horizonte (MG)

  • Carreira: Pós-doutora em Oncologia pela Harvard University, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), responsável pelo Oncoclínicas Mulher. Idealizadora do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA/GBTG), ChairGyn no Latin American Cooperative Oncology Group e fundadora da DOM Oncologia. Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC)

ENCONTRO - Podemos começar falando sobre tratamento? O que há de mais moderno na abordagem do câncer de mama?

Angélica Nogueira-Rodrigues - Recentemente, houve avanços significativos no tratamento do câncer de mama, que abrangem desde pacientes com doença inicial até aquelas com a situação avançada. E entre os principais avanços está a introdução dos ADCs (Antibody Drug Conjugates), que demonstraram eficácia no tratamento dos casos mais graves. Esses medicamentos têm mostrado resultados promissores, contribuindo para melhorar a sobrevida das pacientes. Além disso, a imunoterapia está se consolidando, especialmente em subtipos como o triplo negativo, onde dados recentes evidenciam um impacto positivo na sobrevida. É crucial que as pacientes compreendam seus subtipos de câncer e as inovações, pois isso pode influenciar suas opções de acesso aos procedimentos.

Os tratamentos são personalizados, uma vez que o câncer de mama não é uma única doença, mas, sim, um conjunto de variações que requerem abordagens específicas. Portanto, é fundamental elaborar um plano de tratamento que leve em consideração a cobertura disponível e, se necessário, buscar alternativas para garantir acesso ao tratamento adequado. Avanços não se limitam apenas a medicamentos; as cirurgias estão se tornando menos invasivas, permitindo uma recuperação mais rápida e menos complicações. A radioterapia também está sendo aprimorada para ser mais focal e menos tóxica, resultando em um impacto positivo na qualidade de vida das pacientes. Embora seja desafiador citar números específicos devido à variabilidade dos estudos, as novas terapias têm demonstrado um aumento significativo na sobrevida.

E em relação ao diagnóstico, que avanços a senhora poderia citar?

Em termos de diagnóstico, também houve progressos notáveis. Tecnologias mais sensíveis, como mamossíntese e mamotomia, estão sendo amplamente utilizadas. A mamossíntese, por exemplo, melhora a detecção do câncer de mama, aumentando a sensibilidade dos exames. Já a mamotomia oferece amostras maiores e mais precisas, proporcionando diagnósticos mais confiáveis. A qualidade das mamografias e ultrassonografias evoluiu consideravelmente, e a incorporação da ressonância magnética no rastreio tem se mostrado uma ferramenta valiosa para diagnósticos precoces. Essas inovações estão ganhando espaço, permitindo a detecção do câncer em estágios mais iniciais e, consequentemente, aumentando as chances de tratamento eficaz.

Informação e acesso à tecnologia têm um grande impacto na qualidade de vida das pacientes"

Angélica Nogueira-Rodrigues, médica responsável pelo Oncoclínicas Mulher

Ainda com toda essa evolução, o câncer de mama, mesmo sendo tratável e com elevadas chances de cura, ainda é o que mais mata mulheres no mundo. Por que isso acontece, na sua avaliação?

Existe uma tendência mundial,  já consolidada, de aumento, de câncer de mama em pacientes jovens. No Brasil, cerca de 20% das pacientes têm menos de 45 anos - uma em cada cinco diagnosticadas. É um número alto, e isso é multifatorial. O câncer de mama é uma doença que tem um comportamento hormonal muito relevante e as mulheres, atualmente, têm mais exposição ao hormônio exógeno. Hoje também engravidam mais tardiamente, e a gravidez é uma proteção contra o câncer de mama, mas uma proteção quando ocorre antes dos 50 anos. A gravidez após os 50, que está cada vez mais frequente, não é fator protetor. Também há uma redução no período de amamentação. Todas essas mudanças fazem com que a mulher tenha mais exposição ao longo da vida aos próprios hormônios dela. Outra questão é a obesidade. O aumento dos índices mundiais é um fator de risco. E nós vivemos uma epidemia de obesidade.

Essa questão da amamentação também é uma realidade que já vem ocorrendo há algum tempo, um fenômeno cultural mundial…

Sim, mulheres trabalhando. E com o retorno ao trabalho, a duração da amamentação é reduzida. Precisamos entender que o câncer de mama é o mais incidente na mulher. A primeira causa de mortalidade, é um câncer muito comum. Os números são muito altos no Brasil, 73 mil mulheres estão diagnosticadas todos os anos. Outro ponto é que trata-se de uma doença potencialmente grave. O diagnóstico precoce é fundamental para aumentar a chance de cura. E, no Brasil, o programa de rastreio não tem adesão ideal. O diagnóstico de casos em estágio avançado é muito frequente. Isso leva a altas taxas de mortalidade. Então, o câncer de mama é o mais incidente e é também a maior causa de mortalidade. Diferentemente, por exemplo, do câncer de próstata, que é o mais incidente no homem, mas é uma doença menos agressiva. Não é a principal causa de mortalidade entre eles.

A senhora poderia explicar um pouco melhor por que ocorre essa baixa adesão ao programa de rastreio

Segundo o Ministério da Saúde, a mulher deve fazer mamografias regulares a partir dos 50 anos, a cada 2 anos. Segundo as Sociedades Brasileiras de Mastologia (SBM) e de Ginecologia, o procedimento deve se iniciar mais precocemente. A recomendação é fazer a partir dos 40 anos, anualmente. Outros países, como o Canadá, também adotam esse prazo de dois anos. Mas as sociedades médicas, diante do aumento da incidência em jovens, sugerem que o rastreio comece mais cedo. E a adesão é baixa. Cerca de 20% das mulheres adultas, apenas, fazem o rastreio adequado.

Além disso, as mulheres encontram sérias dificuldades, segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia, para identificar onde e como agendar uma consulta com um mastologista, realizar mamografia, biópsia e tratamentos. Como resolver esse gargalo, na sua opinião?

O diagnóstico preciso é ideal para que a paciente entenda qual é o caminho que deve seguir, seja no sistema público de saúde ou no privado. Não há falta de mamógrafos no Brasil. Nem no sistema público. Pode haver dificuldades de marcação etc., mas há uma rede estruturada que a paciente precisa utilizar. Há menos demanda de paciente do que o necessário.

Por questão de letramento?

Exatamente. É o não conhecimento da relevância que isso pode ter na vida dela. E muita disparidade de informação, certo? Há mulheres que fazem preventivos duas vezes por ano, até desnecessários, psicológicos, e fazem mamografias somadas a outros exames de mamas, às vezes, também desnecessários. Outras não têm sequer a informação. Então, se a mulher acha que é pouco importante, é porque não está bem informada. É, realmente, questão de letramento.

Com o Outubro Rosa, já tivemos uma evolução, por exemplo, nos últimos dez anos, nessa adesão?

Lenta, muito lenta, muito lenta. Os números de rastreio no Brasil seguem muito baixos. Há um aumento durante o Outubro Rosa, o que comprova a eficácia dessa estratégia, mas o Outubro Rosa deveria ser o ano inteiro, pois é para alertar que a mulher tem que se cuidar. Eu acho bastante relevante, e não é repetitivo, porque não atingiu seu objetivo.

O que tem observado no dia a dia dos atendimentos?

Atendemos pacientes privados e de planos de saúde, que geralmente apresentam a doença em estágios menos avançados no momento do diagnóstico, devido à adesão a programas de rastreio. Esse grupo é bastante heterogêneo, e há uma regionalização no cuidado: algumas áreas do Brasil têm melhor acesso, mesmo dentro do sistema privado. Uma questão importante é aumentar o alcance da prevenção. Neste sentido, a Oncoclínicas tem um projeto interessante, chamado Acesso. Ele serve como porta de entrada para exames não cobertos pelo sistema público. Visa facilitar exames a um custo reduzido em relação ao mercado, para pacientes em rastreio, diagnóstico ou tratamento de câncer. O programa realiza uma análise socioeconômica, e, se a paciente se enquadrar, ela poderá usufruir desses serviços.

Um projeto importante da Oncoclínicas é o Acesso, que serve como porta de entrada para exames não cobertos pelo sistema público"

Angélica Nogueira-Rodrigues, médica responsável pelo Oncoclínicas Mulher

A senhora poderia detalhar um pouco mais esse programa?

O programa Acesso foi inaugurado há cerca de dois anos e já atendeu mais de 10 mil mulheres. Ele é focado em permitir que pacientes com limitações financeiras tenham acesso a exames que, muitas vezes, são escassos no sistema público, como o PET scan. Por exemplo, em Minas Gerais, há uma disponibilidade muito limitada para esse exame. No setor privado, conseguimos oferecer esses exames e tratamentos a preços acessíveis. Abrange toda a linha de cuidado e inclui coparticipação, que, embora possa parecer alta, muitas vezes resulta em valores abaixo da média do mercado. É uma abordagem social das clínicas para apoiar uma população que enfrenta desigualdades no acesso à saúde no Brasil.

Vamos falar um pouco sobre o Outubro Rosa...

Durante o Outubro Rosa, são realizadas várias ações especiais, com foco em sessões educacionais. Programas e oficinas para pacientes, além de campanhas de conscientização na cidade. Nacionalmente, o principal projeto é o Women Innovation, que reúne líderes na área de câncer feminino em São Paulo para discutir o futuro do tratamento e rastreio. O objetivo é aprimorar as práticas de rastreio e diagnóstico, buscando maior eficácia e menor morbidade.

Sobre a inteligência artificial, como ela pode ajudar no rastreio do câncer?

A inteligência artificial está se tornando uma ferramenta importante, aumentando a precisão na análise de biópsias e mamografias. A aplicação de algoritmos em diagnósticos, tanto em imagens quanto na patologia, está se consolidando no cuidado das pacientes. Além disso, a telemedicina e o uso de aplicativos para melhorar o letramento das pacientes têm sido testados, oferecendo mais orientações e acessibilidade.

Por fim, gostaria que a senhora falasse sobre os estigmas que envolvem o câncer de mama. Como isso afeta as pacientes?

O câncer carrega um estigma cultural significativo, associado a dor e morbidade ao longo dos séculos, o que dificulta a mudança de percepção. Pode levar gerações para que a sociedade entenda que o câncer pode ser controlado. Embora as cirurgias tenham se tornado menos invasivas e os tratamentos menos tóxicos, a feminilidade e a imagem corporal continuam a ser desafios para muitas mulheres, especialmente em relação à perda de cabelo e mudanças hormonais. É fundamental trabalharmos esses estigmas, promovendo uma linha de cuidado adequada e multiprofissional. Informação e acesso à tecnologia têm um grande impacto na qualidade de vida das pacientes.

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação