Aconteceu em São Paulo. Recentemente, estudantes do ensino médio do Liceu de Artes e Ofícios foram desafiados a produzir uma redação usando exclusivamente uma das várias ferramentas da inteligência artificial. A correção do material produzido, no entanto, apontou que a maioria dos textos apresentava "inconsistência de informação", bem como ausência de fluidez, conforme ressaltado em matéria alusiva à experiência publicada pelo jornal Estado de São Paulo.
Não que a instituição citada refute o uso da IA - ao contrário, elaborou inclusive conteúdo específico sobre o tema. Segundo texto que consta do próprio perfil da instituição, no Instagram, o Liceu defende uma abordagem "que equilibra o uso eficaz da tecnologia e métodos tradicionais". Assunto em alta mundo afora quando se trata da adequação do ensino aos tempos atuais, frente aos inevitáveis avanços tecnológicos, o uso da IA, claro, se tornou alvo de incontáveis estudos.
No Brasil, é o caso da pesquisa "Perfil e Desafios dos Professores da Educação Básica no Brasil", aplicada em março deste ano, por iniciativa do Instituto Semesp (Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior) junto a 444 docentes de todas as regiões do país. Foram ouvidos professores das redes pública e privada, do ensino infantil ao médio. O resultado apontou que 74,8% dos entrevistados concordam - parcial ou totalmente - com o uso da tecnologia e inteligência artificial no ensino.
Por seu turno, uma pesquisa da instituição norte-americana Walton Family Foundation detectou que 79% dos alunos preferem ter um professor que trabalhe com as novas tecnologias do que um docente com medo delas. Mesmo porque, o Hub Educacional (ecossistema de tecnologia e inovação) aponta que, nos dias atuais, o papel do professor não se limita ao de transmissor de informações, mas, sim, de mediador e apoiador no processo de aprendizagem.
Neste caso, como assegurar o equilíbrio entre o uso consciente e ético da tecnologia enquanto ferramenta eficaz e importante de apoio para o estudante sem gerar uma dependência tecnológica que possa coibir o raciocínio, o pensamento crítico e a criatividade? Diretor-geral na Rede Batista de Educação e pesquisador do assunto, Valseni Braga acredita que sim, a inteligência artificial é uma ferramenta poderosa para apoiar o desenvolvimento acadêmico e preparar os estudantes para o futuro. No entanto, não sem ser antecedida por discussões contínuas envolvendo equipe pedagógica e gestores."Para que a IA seja aliada de qualquer processo educativo é preciso que todos sejam bem treinados para utilizá-la, e que seu uso seja pautado pela ética e pela transparência".
Maria Alice Viotti, coordenadora pedagógica do colégio Edna Roriz
Diretor executivo das Unidades Escolares do Bernoulli, Marcos Raggazzi corrobora: "A IA é um recurso muito potente, que pode ser utilizado de múltiplas formas". Mas acrescenta que as instituições devem estar sempre atentas para que as inovações não sejam utilizadas de forma antiética, como, por exemplo, instrumento potencializador de cyberbullying. Ou, ainda, de modo a que os alunos não desenvolvam o necessário raciocínio analítico.
Pensamento similar norteia a equipe do Colégio Edna Roriz - que, aliás, respondeu às perguntas da Encontro com um texto elaborado em conjunto por vários docentes. "A inteligência artificial oferece vasto espectro de possibilidades dentro do ambiente escolar, com aspectos positivos, claro, mas, também, com muitos desafios a serem enfrentados". Neste sentido, para lidar com essa oportunidade, que ainda pode ser uma fonte de riscos, é necessária uma abordagem equilibrada e muito bem planejada, defende o texto.
No caso da Rede Batista, Braga conta que, neste ano, a instituição, inclusive, promoveu um projeto de capacitação em inteligência artificial envolvendo todos os colaboradores. "Formamos um comitê com especialistas para organizar protocolos de uso, com o objetivo de minimizar os impactos negativos e potencializar a utilização em frentes como comunicação, gestão de dados acadêmicos, gestão de avaliações e segurança", contextualiza.
O docente pontua ainda que são promovidos encontros regulares para analisar tendências e identificar melhores práticas, de modo a garantir que a tecnologia seja incorporada de maneira ética e eficiente. "Entendemos o potencial risco de uso indevido de plataformas como o ChatGPT, especialmente no que tange a trabalhos e atividades em casa. É por isso que o diálogo sobre o uso da tecnologia faz parte da nossa rotina", explana Braga, acrescentando que, na Rede Batista, os estudantes são sempre incentivados a desenvolver habilidades como capacidade de síntese e criatividade.
Entre as medidas já adotadas na instituição, acrescenta, está, por exemplo, a orientação para que os professores adaptem as propostas de atividades para que sejam menos focadas em respostas prontas e mais voltadas para processos de reflexão, análise e criação. "Além disso, incentivamos a utilização de IA em contextos supervisionados, como suporte à pesquisa e ao desenvolvimento de projetos, reflexão interativa com a produção escrita, sempre deixando claro os limites éticos de seu uso".
Já o Bernoulli possui, há algum tempo, uma assistente virtual chamada ULLI. De acordo com Marcos Raggazzi, trata-se de uma ferramenta de aprendizagem que pesquisa, na base de conteúdos, respostas para as dúvidas dos alunos, bem como realiza resumos, identifica ideias principais, correlaciona assuntos, fatos e tempos históricos e ensina os alunos a resolverem problemas de cálculos matemáticos passo a passo. "Desse modo, ficar com dúvidas e não ter ‘a quem recorrer’ não é mais uma realidade. Entretanto, continuamos com os atendimentos presenciais e virtuais com o nosso corpo de monitores, pois a interação humana é imprescindível", advoga.
Os docentes do Edna Roriz também ratificam a importância do contato entre aluno e professor. "Assim, é importante estarmos atentos para evitarmos a despersonalização das relações humanas". Uma outra questão que a equipe do Edna Roriz coloca na roda é o acesso às aludidas ferramentas. "Acreditamos que a dificuldade de acesso a elas pode ampliar a desigualdade entre escolas com diferentes realidades socioeconômicas". O treinamento é outro ponto evocado. "Para que a IA seja aliada de qualquer processo educativo é preciso que todos sejam bem treinados para utilizá-la, e que seu uso seja pautado pela ética e pela transparência".
Cuidados devidamente tomados, Raggazzi defende o papel significativo das IA’s para a capacidade criativa dos alunos. "Com elas, eles podem construir histórias em quadrinhos, compor trilhas sonoras, desenhar cenários e peças publicitárias, criar interações entre personagens históricos, criar vídeos e uma infinidade de possibilidades criativas. Até algum tempo atrás, os alunos poderiam ter ideias, mas colocá-las em prática era mais difícil. Agora, há recursos gratuitos e de alta qualidade disponíveis a um clique".
Entre as várias possibilidades para o ambiente escolar, Valseni Braga, da Rede Batista, destaca, ainda, a capacidade de personalizar o aprendizado, apoiar estudantes em suas necessidades e facilitar o acesso a novos conteúdos e metodologias de ensino. "O uso dessas plataformas com IA permite, por exemplo, produzir textos de forma interativa com recursos de interlocução que ajudam o estudante a avaliar sua produção de forma individualizada e imediata, identificar dificuldades de aprendizado de maneira mais rápida e precisa, possibilitando intervenções educativas personalizadas".
A equipe do Edna Roriz, por sua vez, também defende que o maior ganho a ser obtido com a inteligência artificial seria a personalização do aprendizado, criando planos e trilhas adaptados às necessidades e ritmos de cada aluno. "Não só o aluno seria favorecido por ter um planejamento que respeita o seu processo de aprendizagem, mas também nós, como professores, poderíamos analisar o desempenho dos alunos, oferecendo conteúdos específicos que visem tanto os seus pontos fracos quanto os fortes". De acordo com a escola, isso torna o espaço mais inclusivo. "E, dentro do nosso projeto, a inclusão é oferecer a cada um a oportunidade de desenvolver seu potencial. Ou seja, acreditamos em várias escolas dentro de uma única escola".
ChatGPT em tarefas escolares?
Mas... E a possibilidade de o aluno usar uma das ferramentas mais populares nos dias atuais, o ChatGPT, para realizar uma tarefa que lhe foi passada pelo professor? O Hub Educacional lembrou, em conteúdo recente disponibilizado em seu site, que, em 2023, no Reino Unido, pelo menos 146 universitários tiveram seus exames zerados após detecção de plágio nos trabalhos acadêmicos, devido ao uso do ChatGPT. Apesar de todo o cuidado necessário, Marcos Raggazzi, diretor do Bernoulli, pondera que, na verdade, a lida com essa possibilidade não é uma questão propriamente nova para as instituições de ensino. "Antigamente, se um professor fazia uma pergunta muito simples, o aluno poderia consultar as enciclopédias para obter a resposta. A diferença é que, agora, basta o aluno repetir a pergunta".
Para respostas factuais, Raggazzi entende que sim, o ChatGPT é muito eficiente. "Entretanto, para respostas mais complexas e para inferências e correlações, ele pode apresentar problemas", coloca. O que os professores devem fazer, então, é não passar tarefas escolares cujas respostas são literais ou factuais. "Devemos, por exemplo, inverter a lógica: em vez de os alunos construírem respostas, eles devem, pois, elaborar perguntas para o ChatGPT a partir de uma resposta oferecida pelos professores. Com isso, os estudantes vão desenvolver ainda mais a capacidade de questionar e perguntar".