Em "O Amor nos Tempos do Cólera" (Gabriel García Márquez, Ed. Record, 1985), um dos mais importantes romances da literatura mundial, é difícil quem não se lembre de um mero coadjuvante: o papagaio que, no realismo fantástico do escritor colombiano, falava francês, latim, conhecia algumas partes do Evangelho Segundo São Mateus e foi o responsável pela morte de um dos protagonistas. Mesmo sendo patife, a ave encantava.
Sim, as folclóricas cenas de animais considerados exóticos, e domesticados, povoam e seduzem o imaginário de muita gente. E com, o advento das redes sociais, vídeos caseiros de macaquinhos sendo cuidados como bebês e de araras, papagaios, cobras, tartarugas e outros animais silvestres criados dentro de casa se tornaram um fenômeno viral, atraindo milhões de visualizações e curtidas.
O que a maioria não sabe é que, por trás dessas imagens fofas, pode ter havido um episódio de crime e sofrimento. É o que alertam as organizações de proteção animal.
O tema foi amplamente divulgado através de uma pesquisa realizada pela organização World Animal Protection, que tem representação no Brasil, em parceria com mais de 20 instituições. Denominada "A Crueldade que Você Não Vê", o estudo, divulgado em 2023, avaliou o conteúdo de 1.226 links de Facebook, Instagram, TikTok e YouTube, onde macacos eram tidos como pets.
Juntas, as páginas avaliadas geraram mais de 12 bilhões de acessos. E o relatório é enfático: a prática impulsiona e alimenta o tráfico de animais silvestres, que está entre as três atividades ilícitas mais rentáveis do planeta, perdendo apenas para o tráfico de drogas e de armas. Mesmo sendo difícil mensurar o alcance e os danos provocados por essas práticas ilegais, estima-se que 38 milhões de animais sejam traficados em território nacional a cada ano.
As consequências da retirada desses seres de seus habitats naturais vai além dos maus-tratos a eles. Após ser sequestrado, o animal passa por toda uma trajetória de sofrimento, que inclui o manejo e transporte inadequados. "Estima-se que 90% desses animais não sobrevivem, o que gera um impacto imenso na biodiversidade", afirma Luciana Imaculada de Paula, promotora de Justiça responsável pela Coordenadoria Estadual de Defesa dos Animais (Ceda).
Os animais silvestres que sobrevivem ao tráfico, não raras vezes, chegam aos abrigos feridos e doentes. Em sua maioria, resgatados por órgãos de proteção ao meio ambiente através de denúncias. Segundo a Lei de Crimes Ambientais, quem tem animal silvestre em casa está sujeito a penalidade e multa. Somente em Belo Horizonte, mais de 8 mil animais são apreendidos por ano, em sua maioria aves, especialmente papagaios.
No Brasil, a Lei Federal de Proteção à Fauna 5.197/67 proíbe caçar, capturar, comercializar e criar qualquer animal da fauna silvestre sem autorização do Estado. Ela é corroborada pela Lei de Crimes Ambientais 9.605/98, que especifica penas e punições para crimes contra a fauna, incluindo a caça e a captura na natureza.
A médica veterinária Cecília Barreto, responsável pelo Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Ibama, reforça que a lei se aplica a todos os casos, inclusive àqueles em que o animal já está há muitos anos em poder de alguém. Neste caso, o melhor caminho é a entrega voluntária dos bichinhos.
Essa entrega pode ser feita, sem penalidade, em qualquer Cetas em Minas Gerais ou através da Polícia Militar. Já a legalização da posse só se dá quando a espécie nasce em criadouro autorizado para comercializá-lo. "O processo ocorre mediante emissão de nota fiscal e implantação de anilha de identificação nas aves e microchips nos mamíferos", diz a especialista. Apenas no caso do chamado Depositário Fiel, as autoridades permitem que o animal silvestre nascido fora do criadouro permaneça com o seu suposto tutor. No entanto, só até que lhe seja dado um destino adequado.
As espécies resgatadas que são encaminhadas ao Ibama são avaliadas por uma equipe de veterinários e, na sequência, são anilhadas, microchipadas e vermifugadas. Após reabilitados, os animais são encaminhados para abrigos através de projetos como o Área de Soltura de Aves (Asas). "São áreas em mata preservada, a maioria de propriedade privada, onde podemos realizar a reintrodução dos animais à natureza", diz Cecília.
Na Fazenda Vale dos Sonhos, o advogado Crispim Zuim construiu um grande viveiro de pássaros e mantém uma área de soltura em mata preservada: "Foi a forma que encontrei de ajudar". Os interessados podem se cadastrar no Ibama que, após avaliar se o ambiente é adequado, autoriza o abrigo provisório ou definitivo no local. Outra categoria de apoio são os Mantenedores da Fauna, que abrigam animais de forma permanente, mas sem poder comercializá-los.
Exemplo disso é a ONG Asas e Amigos em Juatuba, na Região Metropolitana de BH,, um braço da clínica veterinária Cães e Amigos de Belo Horizonte. "Como são poucos os locais que acolhem animais silvestres vítimas do tráfico, optamos por receber aqueles que não têm mais condições de serem reintroduzidos na natureza", diz o médico veterinário e idealizador da ONG, Marcos de Mourão Motta.
Fundada em 2001, atualmente a instituição conta com 530 animais silvestres que encontraram no santuário um lar definitivo. Uma terceira opção para quem quer ajudar a fauna são os Criatórios Científicos com fins de conservação ou de pesquisa, que têm o objetivo de preservar espécies em extinção. Por fim, os zoológicos atuam na preservação da fauna possibilitando a procriação de espécies cujos filhotes possam ser introduzidos na natureza.
Canais para denúncia de tráfico de animais silvestres:
Ibama
- Plataforma Fala.BR
- Linha Verde: 0800 061 8080
- Disque-denúncia: 181 (acesso mais fácil)