Quando disse o "sim" no altar, há cerca de dois anos, Luana* (nome fictício) não imaginava que se separaria tão depressa de Alan* (nome fictício), seu primeiro e único namorado. Tampouco, poderia prever o motivo para o fim daquele sonho a dois: o vício em apostas virtuais, também conhecido como ludopatia.
"Começou quando a gente namorava. Eu achava uma atividade recreativa. No começo, foi tudo às mil maravilhas. Ele conseguia ganhar dinheiro, realmente entrava. Mas também saía fácil", lembra. Encarado como um negócio sério, uma fonte extra de rendimento, a prática era uma atividade sedutora para o então marido. Até que as perdas foram se tornando irreparáveis. Mas Alan não conseguia mais parar. Tornou-se uma compulsão.
Hoje, a história do ex-casal se junta a tantas outras relacionadas à crescente popularização dos serviços de apostas virtuais no Brasil e no mundo. É o que aponta a revista científica "The Lancet Public Health", que classifica o problema como "epidêmico" e sinaliza para um quadro de risco à saúde pública mundial em um cenário em que, em todo o globo, 46,2% dos adultos e 17,9% dos adolescentes fizeram alguma aposta em 2023, seja em bets ou em cassinos digitais, como o Jogo do Tigrinho. Os dados apurados pelo periódico dão conta que 450 milhões de pessoas estão apostando, das quais 80 milhões apresentam algum distúrbio associado à prática.
"Nós estamos em uma situação gravíssima, seja do ponto de vista da saúde pública ou da economia", enfatiza o doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula, lembrando de um estudo do Santander que aponta: as apostas on-line podem ter um impacto negativo de 0,6% a 2,1% do PIB brasileiro neste ano.
Ele cita que esses jogos têm dinâmica muito diferente de outros já institucionalizados no Brasil, como a Mega-Sena. "Nela, você tem uma probabilidade de ganhar pequena, mas constante. Já no caso desses novos jogos, o valor do prêmio muda a cada minuto, e as probabilidades de ganhar também", situa, sublinhando que o dinamismo do formato favorece o vício.
Além do expressivo estrago econômico, o tamanho do problema pode ser mensurado ao se observar o exponencial crescimento do número de registros de atendimentos relativos ao jogo patológico na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), serviço que integra o SUS. De acordo com dados do Ministério da Saúde, na comparação entre o total de casos do tipo em 2022, quando as apostas on-line foram legalizadas no país, e os sete primeiros meses de 2024, esse volume quase triplicou, indo de 841 naquele para 2.406 entre janeiro e julho deste ano.
"É importante destacar que os dados referem-se a atendimentos e não a pessoas, uma vez que uma mesma pessoa pode ser atendida mais de uma vez", esclarece o informe da pasta, argumentando que a RAPS já acolhe a demanda por esse tipo de atendimento.
"É importante destacar que os dados referem-se a atendimentos e não a pessoas, uma vez que uma mesma pessoa pode ser atendida mais de uma vez", esclarece o informe da pasta, argumentando que a RAPS já acolhe a demanda por esse tipo de atendimento.
Historicamente, a proibição de apostas esportivas, jogos de azar e cassinos no Brasil, em 1946, se deu por "questões morais, jurídicas e religiosas", mas guarda relação, entre outros fatores, com a preocupação, já à época, com o vício, as dívidas e os problemas sociais. Uma paisagem registrada por Nelson Rodrigues (1912-1980) no clássico A Falecida, publicado há mais de 70 anos. Na tragicomédia teatral, o personagem Tuninho não concede o último desejo da esposa, Zulmira, de ter um enterro luxuoso. Ao contrário, lhe compra o caixão mais barato possível e vai em seguida para o Maracanã, ver o jogo entre Vasco e Fluminense e apostar todo o dinheiro que tinha na vitória do seu cruzmaltino. Comédia rodrigueana das mais rasgadas. Mas, a vida como ela é.
A trama, de certa maneira, reflete o relato de Luana, que teve um desenrolar nem um pouco engraçado: "Quando ele começou a perder, a se afundar, manteve tudo em segredo", conta, inteirando que, quando se casaram, Alan provavelmente já acumulava dívidas, algo nunca revelado a ela. "No começo, ele cuidava das contas. Eu até transferia parte do meu salário para ele gerir", detalha, contando que descobriu o rombo por acaso, ao encontrar correspondências de cobranças. "A gente tinha só seis meses de casamento", lamenta. Então, confrontado, ele admitiu ter perdido o controle. Mas, àquela altura, as circunstâncias já eram críticas. "Já havia contratado empréstimos, financiamentos… Foi fazendo uma nova dívida para cobrir a outra. Virou uma bola de neve, que me engoliu: quando dei por mim, já tinha empréstimo no meu nome também", indica. História que tem se repetido em tantas famílias no país.
Frente ao desafio de recompor as finanças, Luana tomou as rédeas da situação. "Passei a fazer a gestão dos nossos gastos e fui atrás de um emprego formal para ele, que relutou até aceitar", diz. A vida seguiu assim por cerca de um ano e dois meses. "Estávamos nos reestruturando aos poucos. Mas, em junho, ele voltou a apostar", conta. "Quando descobri, ele tentou me convencer que tinha voltado a ganhar dinheiro, que estava ‘dando certo’, mas nunca cogitou parar. No fim, entre o casamento e o vício, ele ficou com o último", conclui a jovem, que deu entrada nos documentos para do divórcio por meio da Defensoria Pública. "Hoje, não tenho condições de arcar com essas despesas", diz.
Sistema de recompensa
Enquanto se recupera do rombo financeiro, Luana tenta se reerguer emocionalmente. Para ela, que se sente trocada, é difícil entender o acontecido. Mas, talvez, ajude saber que o tipo de vício que lhe custou o casamento é forte por estar associado a padrões primitivos do cérebro, que foram importantes para a sobrevivência da espécie.
Em outras palavras: o problema, claro, não é ela, mas um comportamento adoecido e rapidamente enraizado ao cotidiano do marido e "naturalizado" pela fisiologia cerebral, como explica Bruno Rezende de Souza, líder do Laboratório NeuroDEv, neurocientista e professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica da Universidade Federal de Minas Gerais. O estudioso detalha que um desses padrões se relaciona com o mecanismo de repetição de comportamentos, que cria, a um só tempo, a motivação para uma ação ser recorrente e a sensação de prazer, que surge como uma recompensa. "Hoje, conhecemos melhor esse mecanismo de repetição, que ocorre na região do cérebro chamada núcleo accumbens, associado à dopamina, neurotransmissor conhecido como ‘molécula do prazer’", explica. Um dos achados recentes mostra que a substância não é liberada só quando a pessoa conclui a ação, mas também um pouco antes disso acontecer. "Ou seja, há dois picos de liberação: um, que leva à motivação do organismo de fazer algo, e outro, que leva à sensação de prazer por ter feito aquilo", detalha, citando que o mecanismo é acionado em diversas situações, seja ao comer, praticar atividade esportiva, adquirir algo novo ou jogar.
Mas, obviamente, para o sistema de recompensa ser ativado, para o jogo ser atrativo, a pessoa precisa ganhar em algum momento. "Se não, ela terá um primeiro pico de dopamina, vai se sentir estimulada a jogar, mas não terá um segundo pico, ficando frustrada", explica. Por isso, situa, as bets oferecem pequenos prêmios para seus usuários, como bônus semanais para serem gastos no jogo, criando a falsa sensação de ganho. "Assim, enganam o cérebro", diz. A acessibilidade e a disponibilidade contínua dessas plataformas de jogos on-line também aumentam os riscos.
O especialista reconhece existirem grupos sociais mais suscetíveis ao vício. "Há o fator genético, que pode provocar mutações, deixando a sinalização dopaminérgica mais sensível a estímulos externos", cita, ponderando, no entanto, que os genes não são determinantes para o desenvolvimento do problema e lembrando que o fator ambiental também precisa ser considerado.
"Como o nosso organismo está em busca de repetir um comportamento que nos deu prazer, a gente fica buscando, no ambiente, algo que nos leve a ele", cita, ilustrando a situação com a experiência dos nossos ancestrais, que, tendo satisfação ao comer um fruto, guardavam informações sobre características daquela vegetação e, com isso, conseguiam repetir o feito mais facilmente. "Logo, quanto menos enriquecimento ambiental tivermos, pior, porque o cérebro vai buscar só uma coisa para repetir", aponta.
Souza aponta que, em um sistema político, social e econômico em que boa parte dos prazeres são limitados pelo poder aquisitivo, quanto mais pobre ou isolado, mais vulnerável ao vício esse indivíduo estará. Nesse cenário, claro, a disponibilidade, a facilidade de acesso e a publicidade pioram tudo, pois qualquer coisa que nos lembra aquele prazer vai gerar o primeiro pico de dopamina, nos motivando ao comportamento viciado. "Daí a importância de um controle rigoroso de propaganda das bets, semelhante ao que ocorre com o cigarro", diz.
Além disso, o neurocientista destaca serem importantes ações políticas que favoreçam o enriquecimento ambiental de espaços públicos. "Onde há mais parques públicos, cinemas gratuitos e quadras esportivas de uso comunitário, por exemplo, as bets competem com outros pequenos prazeres, que nos distraem de prazeres muito fortes". Reforça a tese os conhecidos experimentos com camundongos que mostram uma considerável redução do uso de cocaína quando esses animais, em laboratório, estão em ambientes enriquecidos social ou ambientalmente.
O neurocientista também defende a implementação de campanhas educativas, com informações sobre os riscos associados aos jogos de apostas digitais e sobre serviços especializados no tratamento do problema. "E o mais crucial: precisamos ir à fonte, reduzindo o lucro dos donos dessas plataformas, porque, se as regras forem fortes, as taxas altas e houver rigor na fiscalização e combate à lavagem de dinheiro, conseguiremos desestimular essa ansiedade pelo lucro a qualquer custo", afirma.
Ajuda deve ser especializada
Em relação às formas de tratamento, o neurocientista Bruno Rezende de Souza é enfático: "É uma armadilha pensar que é possível, sem auxílio especializado, superar esse vício. O dependente, nesses casos, precisa da ajuda de profissionais da saúde, como psicólogos e psiquiatras, que, em conjunto, vão trabalhar a dessensibilização de gatilhos ambientais e emocionais que levam ao comportamento". As alternativas, prossegue, incluem desde terapias individuais até modalidades em família ou com um grupo de apoio, como ocorre no Alcoólicos Anônimos (AA).
Para quem convive com pessoas que sofrem com o jogo patológico, Souza diz que apresentar possibilidades de tratamento pode ajudar. Estimular outras atividades de lazer e sociabilidade é outra medida positiva, assim como é fundamental não julgar – o que não significa ser leniente e acobertar o vício: o dependente precisa compreender os efeitos dela e lidar com suas consequências.
Por outro lado, o pesquisador acredita que a completa proibição das apostas não é a solução. "É uma medida que, historicamente, nunca funcionou. A Inglaterra já tentou proibir o café, os Estados Unidos já tentaram proibir o álcool. Nunca deu certo. O que precisamos, portanto, é buscar medidas inteligentes para mitigar o problema."
Regulamentação das bets é passo importante
A partir de 1º de janeiro de 2025, o mercado de jogos on-line e apostas esportivas, também conhecidos como "bets", passará por uma transformação significativa no Brasil. Nessa data, entram em vigor novas regras que exigem que as operadoras obtenham licenças no país, além de passar a recolher impostos. A regulamentação também estabelecerá limites para a publicidade dos jogos, criará medidas de proteção aos consumidores e implementará políticas de prevenção e tratamento para jogadores compulsivos.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR), que representa 75% do mercado brasileiro, as iniciativas foram pensadas para ajudar a evitar o uso abusivo, conter a compulsão e combater o vício. Em comunicado divulgado amplamente no país, a organização defende que trabalha para desenvolver "um ecossistema de apostas online sustentável, seguro, confiável e que gere benefícios para toda a sociedade".
Entre outras obrigatoriedades, as bets vão contar com reconhecimento facial, ferramenta essencial para coibir que menores de 18 anos apostem. Os usuários poderão estabelecer parâmetros nas plataformas definindo limites máximos de tempo jogado, assim como perda financeira. Outras medidas já foram antecipadas, como o bloqueio do uso do cartão de crédito. Também será adotada uma nova terminação nos domínios para as bets na internet, indicando sua legitimidade: .bet.br. Somente as marcas autorizadas terão este domínio para melhor identificação pelos apostadores."Nosso organismo busca repetir um comportamento que nos deu prazer"
Bruno Rezende de Souza, líder do Laboratório NeuroDEv, neurocientista e professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica da UFMG
Além disso, as plataformas deverão seguir regras rigorosas no combate à fraude, à lavagem de dinheiro e à publicidade enganosa. Segundo o governo federal, a nova regulamentação exigirá que as operadoras registrem o CPF dos jogadores. O intuito dessa medida é permitir o monitoramento do histórico dos apostadores, com o objetivo de proteger sua saúde mental e financeira.
Governo Federal e organizações de saúde mental também têm promovido campanhas de conscientização para alertar sobre os riscos do vício em apostas e fornecer recursos para tratamento.
Enquanto a regulamentação do setor de apostas on-line segue em discussão, algumas empresas testam mecanismos que respondam ao problema do vício e da lavagem de dinheiro. Caso da plataforma SeuBet, que, em informe à imprensa, diz investir em sistemas de monitoramento para identificar padrões de comportamento de risco ou suspeitos. Só neste ano, foram 136 jogadores bloqueados, 375 contas limitadas e 344 afiliados banidos, totalizando 855 contas. Vinicius Barrel, CEO da SeuBet, ainda ressalta que a plataforma oferece suporte ao cliente 24 horas por dia e incentiva "práticas de apostas conscientes".
Fique atento aos sinais de vício em apostas
- Você tem tido preocupação excessiva com as apostas?\
- Tem necessidade de apostar quantias cada vez maiores para alcançar a mesma satisfação?
- Sente-se culpado ou ansioso após apostar, mas continua a fazê-lo?
- Fica irritado ou ansioso ao tentar parar?
- Tem mentido, escondido ou minimizado gastos com apostas?
- Tem negligenciado suas responsabilidades?
- Admite arriscar relacionamentos importantes em prol dos jogos?
- Tenta recuperar perdas apostando ainda mais?
- Tem feito empréstimos recorrentes e de valores cada vez maiores?
- Tem perdido interesse em hobbies e interações sociais que antes eram prazerosas?
Onde buscar apoio contra o vício em apostas
Jogadores Anônimos
- Grupo Nova Vida. Av. do Contorno, 4.777, Funcionários, na Sede do Abraço. Encontros às terças e quintas, a partir das 18h.
Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR)
- Foca na promoção do jogo responsável e na prevenção do vício. Site: ibjr.org
A Prefeitura de Belo Horizonte informa que a pessoa com compulsão por jogos pode receber tratamento na rede SUS-BH por meio da Política de Saúde Mental.
"Meu chão caiu em um poço de culpas. Mas aquela era apenas parte da verdade" - Aurora* (nome fictício)
"Meu filho é um menino lindo, educado, inteligente, querido por todos. Afetivo, com um senso de humanidade muito forte, respeitoso, companheiro. Aos 22 anos, morava em uma república em outra cidade para fazer faculdade numa universidade federal. Tudo seguia dentro da mais pura normalidade quando ele me contou que havia cometido uma "mancada": perdeu dinheiro em uma aposta e o valor da mesada não havia sido suficiente naquele mês. Socorri, não falamos mais nisso e controlei as contas dele por uns meses. Tempos depois, percebi que suas compras e passeios extrapolavam a pensão que recebia do pai. A justificativa era que havia economizado. E como sempre o incentivei a poupar e investir, estava tudo certo. Ele estava amadurecendo! Foi quando o notei extremamente prostrado, sem energia. Me pediu para trancar a faculdade e trabalhar. Achei estranho e o pressionei. Como somos muito companheiros, ele acabou soltando tudo. Um rombo enorme nas contas, problemas com agiotas, dívidas com a república estudantil, com os amigos. Meu chão caiu em um poço de culpas. Mas aquela era apenas parte da verdade. Um tempo depois, ele caiu em tentação novamente. Foi quando pediu arrego de verdade. Não conseguia parar de jogar. Relatamos ao pai, que deu todo o apoio. Conversamos juntos, falamos sobre terapia, tratamentos e, principalmente, sobre o quanto ele era bom e capaz. Passou a trabalhar com o pai e voltou para a faculdade e para a academia. Contas controladas mais uma vez. Ele, então, falou que estava bem, forte. Pediu privacidade nas contas. Não durou dez dias. Desta vez, o rombo foi menor. Desde então, seguimos nesta luta. Que muitas vezes sinto que é inglória, porque os estímulos são muitos. O Poder Público tem de proibir as propagandas. Instigam muito. Durante os jogos ficam dando insights, artistas felizes, as mensagens são de que você sempre vai ganhar. É um absurdo. Entendo que proibir não é o caminho, mas tem de tirar esse glamour. Como foi feito em publicidades de bebida e cigarro. As casas de apostas também têm de ter um controle de "ganha e perde". Um mecanismo no sistema dando alertas. E ter um suporte do governo nesta regulamentação é muito importante. Enfim, seguimos na luta. Meu filho é forte e somos uma família companheira, que dará a ele todo o apoio possível. Ele vai sair dessa."