Estado de Minas COMPORTAMENTO

Apps de relacionamento têm gerado desgaste mental e emocional extremos

A disponibilidade quase infinita de opções associada a um baixo interesse pelo outro tem causado o chamado 'dating burnout'; entenda


postado em 19/02/2025 01:29

Reação: o Match Group Inc., que detém o Tinder e outros aplicativos de paquera, tem testado novos recursos para priorizar a melhora da experiência do usuário em detrimento da monetização de serviços(foto: Freepik)
Reação: o Match Group Inc., que detém o Tinder e outros aplicativos de paquera, tem testado novos recursos para priorizar a melhora da experiência do usuário em detrimento da monetização de serviços (foto: Freepik)
Já faz dez anos que a professora Valéria César, 56 anos, começou a usar aplicativos de relacionamento como Tinder, Happn e afins. Durante esse período, teve boas experiências, inclusive um namoro de cinco anos que começou com um match. Porém, o acúmulo recente de frustrações fez com que ela entrasse em 2025 se livrando de todas as contas que tinha nesses apps. A gota d’água foi uma tentativa de golpe de um homem com quem conversou bastante e estava achando legal até aquele ponto.

"Foi no dia 31 de dezembro, ele me chamou para conversar dizendo que acordou triste porque estava com R$ 360 bloqueados no banco sem saber o motivo, e por isso ele e a mãe passariam a virada sem ceia. Na hora, eu já percebi a má intenção, e quando ele me pediu dinheiro emprestado eu desconversei", conta. "Mais tarde, ele voltou dizendo que tinha conseguido desbloquear o cartão, mas eu só o denunciei, bloqueei em tudo e apaguei essa porcaria de Tinder. Mas tem muita mulher carente que cai nesse tipo de conversa, né?".

Decidida a passar longe dos aplicativos por tempo indeterminado, Valéria faz parte de um grupo cada vez mais numeroso de pessoas enfrentando o que tem sido chamado de dating burnout, uma espécie de fadiga da busca por relacionamentos, especialmente a partir do uso de apps. Existe um cansaço generalizado de deslizar por uma infinidade de perfis em busca de potenciais parceiros. Os usuários também relatam frustração com o fato de que gasta-se muito mais tempo na prospecção em si, do que indo de fato a encontros, além de receio com as decepções que vêm em outras etapas do processo.

Uma pesquisa do aplicativo Bumble, por exemplo, revelou que 70% das mulheres na plataforma experimentaram essa sensação em algum momento. Por outro lado, dados da Sensor Tower, consultoria especializada em aplicativos de celular, demonstram a queda dos números operacionais do Tinder no Brasil. Entre o primeiro trimestre de 2021 e o terceiro trimestre de 2024, o número de downloads semanais do aplicativo foi de 190.000 para 128.300, ou seja, 32,5% menos. Já os usuários ativos, no mesmo período, passaram de 6,6 milhões para 4 milhões, ou uma queda de 39,4%.

Valéria César decidiu passar longe dos aplicativos por tempo indeterminado: cansada de desinteresse ou tentativas de golpe(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Valéria César decidiu passar longe dos aplicativos por tempo indeterminado: cansada de desinteresse ou tentativas de golpe (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Com o contingente de assinantes em declínio – não apenas no Brasil – a CEO do Tinder, Faye Iosotaluno, em apresentação recente a investidores da Match Group Inc., que detém esse e outros apps de paquera, afirmou que a empresa quer priorizar a melhora da experiência do usuário em detrimento da monetização de serviços. Com isso, estão sendo testados novos recursos, como a exigência de fotos de rosto nos perfis e recomendações com curadoria feita por IA.

No mercado brasileiro, especificamente, o grupo Match pretende melhorar seu desempenho lançando outro aplicativo de seu portfólio no país, em 2025. O Hinge, que atualmente opera nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Irlanda, França, Alemanha e Nova Zelândia, aposta numa abordagem para quem busca relacionamentos sérios e duradouros. Nessa plataforma, os usuários podem criar perfis mais detalhados, respondendo a perguntas que mostram sua personalidade. Além disso, as interações começam quando alguém curte uma resposta específica no perfil de outra pessoa, o que favorece o início de conversas mais significativas.

Enquanto as mudanças não acontecem, porém, Valéria pretende se manter afastada dos apps. "Eu já conheci muita gente bacana, até que viraram amigos, mas ultimamente eu percebo que a maioria dos homens estão querendo aplicar golpe, principalmente em mulheres mais velhas como eu", diz. Com preferência por homens mais jovens, ela mantém a faixa de idade para potenciais parceiros entre 38 e 47 anos, e diz que quando não são golpes descarados como o daquele que pediu dinheiro, ela nota que são, de alguma forma, aproveitadores.

O incômodo da analista jurídica Maíra Castro, 33, é que parece que as pessoas têm tido dificuldade de se comprometer com o próprio desejo. "É como se elas não quisessem bancar o próprio interesse. O match é possível, ele acontece, mas não te obriga a conversar com ninguém. Então, quando você manda um ‘oi, tudo bem?’ muita gente nem responde", conta. Tem aqueles que até respondem e depois somem, e têm conversas legais, que evoluem para troca de redes sociais, mas também param por aí, criando uma espécie de limbo virtual que eventualmente rende uns likes e só.

Lígia Baruch, psicóloga clínica, doutora em psicologia pela PUC-SP e autora do livro Tinderellas: O Amor na Era Digital:
Lígia Baruch, psicóloga clínica, doutora em psicologia pela PUC-SP e autora do livro Tinderellas: O Amor na Era Digital: "As pessoas estão com preguiça de se relacionar" (foto: João Quesado/Divulgação)
Usuária intermitente dos aplicativos há mais de dez anos, Maíra sente que antes as pessoas eram mais interessadas em conversar, se conhecer e se encontrar, de fato. "A consideração pelo outro está bem menor. E olha que eu nem acho que precisa de tanta, mas falta o mínimo", completa. Bissexual que se relaciona com mulheres há menos tempo do que com homens, Maíra se susrpreendeu ao perceber nelas uma indisponibilidade ainda maior do que a dos homens. "Ignorar alguém completamente é um comportamento inaceitável nas interações presenciais, mas nos aplicativos isso tem sido naturalizado.

Exaustão é generalizada

A questão do cansaço, principalmente como uma queixa vinda das mulheres, está atrelada a outros fenômenos do contemporâneo, e se estende muito além dos aplicativos de relacionamento, como explica Lígia Baruch, psicóloga clínica, doutora em psicologia pela PUC-SP e autora do livro Tinderellas: O Amor na Era Digital. "É o cansaço das redes sociais, que têm esse padrão de um rolar infinito. Se você quiser, pode passar 24 horas ali, é viciante", afirma. Esse padrão leva a comparações que, por sua vez, produzem uma mercantilização dos afetos, já que ao verem alguém com uma casa ou corpo bonito, ou que aparente ter uma situação financeira, as pessoas tendem a perseguir esses ideais, investindo em consumo.

"É uma espécie de capitalismo afetivo a forma como as relações amorosas hoje são tratadas, numa lógica neoliberal de troca, de ganho, de competição. E tudo isso colabora para essa sensação de esgotamento afetivo. As pessoas estão com preguiça de se relacionar, e não é só afetivamente, romanticamente, mas também em outras esferas, na da amizade, dos programas sociais", analisa a psicóloga.

Maíra Castro, analista jurídica:
Maíra Castro, analista jurídica: "O match é possível, ele acontece, mas não te obriga a conversar com ninguém. Então, quando você manda um %u2018oi, tudo bem?%u2019 muita gente nem responde" (foto: Ana Luisa Macedo/Divulgação)
A presença online excessiva está gerando uma epidemia de cansaço e solidão. Porque nas telas há muito movimento, muita informação, muitas conexões frias, mas são poucos os contatos reais, num mundo extremamente acelerado, onde não se tem tempo para quase nada. A necessidade de performar o tempo inteiro, de ter o corpo mais bonito, o melhor emprego, fazer as viagens mais interessantes, é tão desgastante que faz com que as pessoas simplesmente desistam. "Hoje, o parecer e o aparecer são mais importantes do que o ser. E isso é extremamente cansativo", acrescenta.

Além da fadiga generalizada, no campo pessoal Lígia tem percebido as pessoas mais narcisistas, com muitas demandas e pouca disponibilidade para o encontro com o que é diferente das expectativas irreais que elas criam. A dificuldade de lidar com a frustração gera fenômenos como o "heteropessimismo", termo que se popularizou recentemente nas redes sociais. "As mulheres, principalmente, estão cansadas de relações com homens imaturos ou que reproduzem aquele modelo já ultrapassado da chamada masculinidade tóxica. E então pensam que, já que não vão encontrar nada de bom, é melhor nem saírem de casa", explica Lígia.

Muitos homens, por outro lado, cientes de que não atendem aos critérios esperados, acabam perdendo a esperança também. É o caso de Paulo*, que não chegou a deixar os aplicativos, mas não espera muita coisa deles. "Eu contei e tenho 180 matches com quem eu nunca conversei, numa conta que tem aproximadamente um ano", conta, sinalizando o baixo comprometimento que existe sequer com o início da conversa. Quando ela acontece, porém, é comum ele perceber as mulheres perderem o interesse ao saberem mais sobre sua vida. "Se eu falo que sou monitor da escola integrada, noto que isso tem um peso contra. Acredito que quem tem profissões com mais status seja favorecido", diz.

Desintoxicação romântica

"Eu acho que as mulheres estão mais, digamos, na linha de frente das mudanças, porque elas foram mais intoxicadas pelo referencial romântico. Eu gosto de chamar esse movimento de intoxicação romântica, e as mulheres estão no momento de se desintoxicar", Lígia pondera. "Nesse processo, muitas vezes há a necessidade de se fechar. Na transição, você vai para o outro polo. Se antes elas faziam de tudo para estarem num relacionamento com um homem, agora isso e outras demandas como a maternidade estão sendo colocadas em xeque."

Os questionamentos são naturais e acabam levando a mudanças. E uma das saídas tem sido o desinvestimento no amor romântico. Tendo isso em mente, Lígia acredita que desistir ou perder a esperança nos relacionamentos talvez não seja a melhor saída. Portanto, parar de usar os aplicativos de relacionamento – que não são, em si, a causa do cansaço – não é necessariamente a solução. "Descentralizar é tirar do foco, do centro, mas eles (os relacionamentos amorosos) podem permanecer ali como mais um lugar na vida de realização e troca, não único. Porque se aquele lugar se desfaz, a pessoa parece que se perde de si. Mas como mais um elemento de satisfação, eu acho que, inclusive para os casais, se torna muito mais interessante quando as pessoas têm vidas próprias", conclui.

(*nome fictício)

Depoimento: "Dá trabalho, sim, mas novas pepitas sempre podem ser encontradas"

"Não vou me identificar, mas quem escreve esse relato é uma usuária dos aplicativos de relacionamento. Não apenas usuária como também entusiasta e vou fazer aqui a advogada do diabo – embora reconheça como legítimas as razões de quem está cansado e faça períodos de detox de tempos em tempos por também ficar exausta das dinâmicas às vezes.

Tenho 36 anos e meu primeiro contato com Tinder e afins foi há mais ou menos quatro, porque quando eles apareceram eu já estava num relacionamento, que ainda durou bastante tempo. Eu nunca tive muita habilidade para o flerte, mas naquele momento nem se eu tivesse, porque era pandemia e não existia ambiente para flertar. Ainda não tinha vacina, mas naquela altura já eram muitos meses de isolamento, então já dava para arriscar um ou outro encontro, de vez em quando – seguindo todos os protocolos.

Nunca cheguei a ter uma experiência ruim, de fato, e brinco que meus piores encontros foram nota 6. Eu credito isso ao desenvolvimento de um método, o que eu fiz em relativamente pouco tempo, e é nisso que eu acho que as pessoas em geral erram: falta de método.

O meu é mais ou menos assim: primeiro construo o perfil com muito cuidado, não só com fotos em que estou bonita, mas que apresentem a minha personalidade. Complemento essa apresentação com outras informações disponíveis, como interesses, uma música e uma bio espertinha/engraçada etc. Materiais para o interessado mais atento poder puxar conversa.
Depois, configuro para que apareçam perfis a até 5 km de distância e num intervalo de idade relativamente curto, porque é um erro achar que ver o máximo de pessoas é melhor. Você quer ver o maior número possível, sim, mas só de gente que esteja perto e numa faixa etária do seu interesse.

Daí, vem o processo de curadoria, porque o app não vai te mostrar só pessoas que te atraiam. Encontrá-las é uma espécie de garimpo. E aí eu tenho regras muito claras: uma lista de atributos que favorecem o like, uma – longa – lista de características eliminatórias e uma lista de concessões, coisas que não necessariamente me agradam, mas às quais eu posso ceder, a depender do contexto.

Como eu tenho essas listas bastante internalizadas, vou passando os perfis muito rapidamente, e chego a ver centenas em poucos minutos. Dessas centenas, eu devo dar like em uns 5% e talvez só uns 30% dos caras retribuam. E paciência. Daí eu sempre puxo papo, tentando levar a conversa pra algum lugar e não só com "oi, tudo bem?". Em poucas mensagens, dá para saber se o santo bateu ou não, e aí quando bate eu já chamo para o encontro.

Muitos não respondem, ou começam a responder e param, e já até sumiram com o encontro já marcado, mas eu não estou nem aí, quem perde são eles. E é basicamente isso, tento usar com leveza, com alguma expectativa, mas não muita, e estrategicamente, tendo em mente que quando não dá certo, não tem nada a ver comigo. Lembrando: dá trabalho, sim, mas novas pepitas sempre podem ser encontradas."

  • Em quatro anos, o número de downloads semanais do Tinder caiu 32,5%: foi de 190.000 para 128.300

  • O número de usuários ativos passou de 6,6 milhões para 4 milhões, uma queda de 39,4%, de 2021 a 2024

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