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'Brasil vive uma epidemia de golpes virtuais', aponta advogado especialista

Pioneiro em direito digital, Alexandre Atheniense lança livro em que esquadrinha processos movidos pelas vítimas


postado em 19/03/2025 00:25

(foto: Freepik)
(foto: Freepik)
Nos últimos anos, os alertas sobre novos golpes digitais na praça foram se tornando cada vez mais comuns. Tanto que, hoje, comunicados e desmentidos públicos parecem já ocupar espaço obrigatório nos calendários oficiais, obedecendo até um cronograma já aguardado. No começo do ano, por exemplo, ocorreram os episódios do falso desconto do IPVA, das guias mentirosas do IPTU e até outras taxas inventadas pelos golpistas.

A situação ilustra bem a ousadia dos criminosos digitais, um grupo que se aproveita de qualquer brecha e, sem medo da polícia ou da Justiça, usa até insígnias e brasões oficiais para conseguir dinheiro fácil, lesando um sem-número de vítimas. E esta é apenas uma face do problema. Afinal, além de usar as instituições para ludibriar a população, esses estelionatários também são hábeis em se passar por outra pessoa. Quem nunca passou ou presenciou a situação de ver um suposto conhecido pedir dinheiro em um "novo número" de WhatsApp? Ou nunca viu ou ouviu falar dos casos de hackeamento de contas no Instagram, quando os bandidos usam o perfil de uma pessoa para anunciar a falsa venda de objetos, móveis e eletrodomésticos?

Esta reportagem poderia seguir listando mais dúzias de exemplos do que parece um ilimitado mosaico de modalidades de delitos virtuais. Um amplo horizonte de possibilidades que, no Brasil, constitui um cenário epidêmico, como avalia o advogado Alexandre Atheniense, um dos pioneiros do direito digital no país, com experiência de mais de 30 anos na área como advogado e professor. Ele lançou recentemente o livro Golpes Digitais – Estudo de Jurimetria (Ed. Conhecimento Livraria e Distribuidora, 230 páginas, R$ 200), em que aplica modelos estatísticos para compreender como o tema é tratado nos processos e nas decisões judiciais.

Com base nos achados de sua pesquisa, o especialista é categórico ao afirmar que o país tem registrado um crescimento exponencial de fraudes e crimes cibernéticos, impulsionado pelo avanço da tecnologia, pelo aumento do uso da internet e pela falta de medidas de segurança adequadas por parte das autoridades, dos usuários e das empresas. "Além disso, a ampliação do acesso a meios digitais sem a devida educação sobre segurança cibernética tem contribuído para a vulnerabilidade da população. Golpes como Pix, phishing, fraudes bancárias, clonagem de WhatsApp e engenharia social são cada vez mais comuns. O cenário é agravado pela dificuldade na identificação e punição dos criminosos, bem como pela demora em instituir medidas de enfrentamento mais eficazes, com o uso da inteligência artificial para acompanhar e a evolução das práticas ilícitas na internet", diz.

O advogado Alexandre Atheniense, especialista em direito digital:
O advogado Alexandre Atheniense, especialista em direito digital: "Meu objetivo com o livro é também chamar a atenção das autoridades para gerar métricas sobre os golpes digitais, para que possamos ter políticas públicas mais eficientes". Publicação analisou 351 processos do Tribunal de Justiça de São Paulo, entre 2020 e 2023, e identificou 38 modalidades de delitos (foto: Divulgação)
Atheniense expõe que duas razões principais o levaram a se debruçar sobre o tema. Primeiramente, ele quis analisar a fundo dezenas de decisões dos tribunais sobre a questão, sobretudo depois da pandemia, quando foi observada uma pulverização desse tipo de crime, o que levou a uma mudança na tendência dos casos julgados.  "Antes, as vítimas não eram tratadas realmente como vítimas, pois os tribunais as consideravam como indivíduos sem rigor no controle das senhas pessoais dos serviços on-line. Este fato as tornava responsáveis pelo golpe", contextualiza.  "Com a proliferação dos casos no Brasil, é difícil encontrar hoje algum magistrado que não tenha sido também atingido por uma fraude ou conheça algum parente ou amigo que tenha sofrido um crime cibernético. A partir dessas situações, os tribunais mudaram a tendência no sentido de penalizar empresas que ofertam serviços on-line, pois entenderam que as vítimas poderiam, em alguns casos, ter sofrido alguma falha de segurança na relação de consumo ou mal tratamento de dados pessoais", complementa.

Um segundo fator que levou à escrita e lançamento do livro tem a ver com a escolha da abordagem do estudo no formato de jurimetria. "Nosso país carece de informações estatísticas sobre crimes digitais a partir de fontes confiáveis. Os processos que estão em trâmite na justiça brasileira não são classificados de forma temática de maneira contextualizada com os delitos praticados. Os tribunais seguem uma classificação de natureza das medidas judiciais elaborada há mais de 20 anos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que não contempla nenhuma informação sobre esses golpes", analisa. "Em outras palavras, sem dados estatísticos sobre o tema, não existem políticas públicas a serem tomadas pelo Judiciário, Polícia Militar, Civil e Federal sobre o real impacto disso, perdas financeiras que poderiam sensibilizar as autoridades com medidas mais efetivas de enfrentamento", acresce.

No livro, Atheniense extraiu, a partir de cada decisão judicial, mais de 40 referências que permitiram analisar cenários inéditos, sintetizando dados sobre o perfil das vítimas de cada espécie de delito, as teses jurídicas vencedoras e outras julgadas improcedentes, a duração média dos processos, o valor das penalidades, o perfil do ramo econômico de cada empresa mais acionada judicialmente, dentre outras conclusões.

Entre os achados, a publicação, que analisou 351 processos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entre 2020 e 2023, identificou 38 modalidades de crimes, com foco nos oito mais recorrentes: Golpe do Boleto Falso; Golpe do Falso Leilão; Golpe do Motoboy; Golpe do WhatsApp; Golpe da Falsa Vaga de Emprego; Golpe do Empréstimo Fraudulento; Golpe do Perfil Falso; e Golpe do SIM Swap (clonagem de chip de celular).

Ele também constatou que o perfil dos atingidos varia a depender do tipo de delito. Idosos, por exemplo, são mais afetados pelo golpe do motoboy e do empréstimo, enquanto jovens adultos são alvos da falsa vaga de emprego. Já as empresas frequentemente acionadas incluem instituições financeiras, operadoras de telecomunicações e plataformas digitais. Os bancos são os réus mais comuns nos casos de boletos falsos, empréstimo fraudulento e golpe do WhatsApp. No livro há também o apontamento quanto à efetividade das ações judiciais em cada tipo desses crimes. "Meu objetivo também foi chamar a atenção das autoridades para gerar métricas sobre a questão, para que possamos ter políticas públicas mais eficientes. Por exemplo, hoje, quando uma pessoa cai no golpe do Pix, vai denunciar pelo Boletim de Ocorrência Digital no site da Polícia Civil,e não existe a opção de classificar o incidente como tal. Ou seja, não temos estatísticas sobre se esses casos foram os que mais causaram prejuízos no ano de 2024", examina, para, em seguida, questionar: como esperar algum investimento do Estado para combater o problema se nem sequer existem dados suficientes para revelar a extensão dos prejuízos causados?

Por que o Brasil se tornou o paraíso dos crimes digitais?

Na avaliação do advogado Alexandre Atheniense, o Brasil é um dos países mais vulneráveis aos golpes virtuais por uma combinação de fatores estruturais, culturais e tecnológicos. Entre as principais razões, está o alto uso da internet e tecnologia bancária. "Estamos entre as populações mais conectadas do mundo, com grande parte das transações financeiras sendo realizadas digitalmente. O país também possui um dos sistemas bancários mais avançados, com ampla adoção de pagamentos eletrônicos, Pix e carteiras digitais. Isso cria um ambiente muito atrativo para golpistas", afirma.

O baixo nível de educação digital também é uma das causas. Apesar da popularização do acesso à internet, muitos brasileiros ainda não possuem conhecimento adequado e compartilham dados sensíveis sem a devida precaução. O especialista cita também a impunidade e o fato de que a legislação brasileira, apesar de avanços como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ainda enfrenta desafios na punição de cibercriminosos.

A popularidade das redes sociais e a confiança excessiva em informações recebidas por esses meios também contribuem para a disseminação de fraudes. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou recente estudo que constatou que os brasileiros são os piores em reconhecer notícias falsas no mundo.

Confira medidas preventivas para evitar golpes digitais


1. Proteção de Dados Pessoais

  • Evite compartilhar informações sensíveis (CPF, endereço, telefone) em sites não confiáveis.

  • Desconfie de solicitações de dados via e-mail, SMS ou WhatsApp, especialmente de bancos e instituições financeiras.

  • Ative a autenticação de dois fatores (2FA) em contas bancárias, redes sociais e aplicativos de mensagem.

  • Utilize senhas fortes e exclusivas para cada serviço e altere-as periodicamente.

2. Atenção a Tentativas de Golpes Comuns

  • WhatsApp: nunca forneça códigos de verificação recebidos por SMS.

  • Motoboy: bancos não enviam motoboys para recolher cartões.

  • Falso Leilão e Boleto Falso: Sempre verifique a autenticidade das empresas antes de realizar pagamentos.

  • SIM Swap: peça à operadora bloqueios adicionais para troca de chip e monitore sua linha telefônica.

3. Educação e conscientização

  • Fique informado sobre novas modalidades de golpes e compartilhe informações com familiares e amigos.

  • Evite clicar em links desconhecidos recebidos por e-mail, SMS ou redes sociais.

  • Sempre confira os detalhes de boletos bancários, verificando o destinatário antes de efetuar pagamentos.

O que fazer, caso se torne vítima


1. Ação imediata para redução de danos

  • Registre o crime na delegacia, preferencialmente em uma especializada em crimes cibernéticos.

  • Entre em contato com o banco e a operadora de celular para relatar a fraude.

  • Acompanhe movimentações bancárias para identificar uso indevido dos seus dados.

2. Coleta de provas

  • Guarde e-mails, mensagens e registros de transações fraudulentas para apresentar em uma ação judicial.

  • Tire prints e salve conversas e links suspeitos que possam demonstrar o golpe.

  • Solicite extratos bancários e histórico de movimentações para demonstrar prejuízos.

3. Medidas judiciais e defesa dos direitos da vítima

  • Acione judicialmente instituições financeiras e plataformas digitais que tenham falhado na segurança e não tenham solucionado o reembolso do prejuízo extrajudicialmente num prazo não superior a 15 dias desde a denúncia do incidente.

  • Baseie sua ação na responsabilidade objetiva das empresas, especialmente em golpes bancários.

  • Exija a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em casos de vazamento ou uso indevido de informações pessoais.

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