Um museu dedicado aos seus grandes escritores, a cidade ainda não tem. Mas um passo importante para corrigir essa lacuna foi dado recentemente com a abertura do Memorial Fernando Sabino. Iniciativa do Instituto Fernando Sabino, em parceria com o Mercado de Origem e a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o espaço é uma experiência imersiva no universo do escritor, jornalista, cronista e contista que fez da cidade cenário de sua literatura. No memorial, até a sala do apartamento de Sabino no Rio de Janeiro é reproduzida (os sofás são réplicas idênticas). Na estante, livros que ele presenteou ou recebeu dos amigos (um deles tem a dedicatória de Manuel Bandeira). Há raridades, como as primeiras edições de O Homem Nu, de Deixa o Alfredo Falar e até obras encontradas hoje só em sebos. No centro, uma mesa com uma das várias máquinas de escrever que teve.
. Na entrada do Mercado de Origem, quem "recebe" o público é a galinha Fernanda, aquela que o menino Fernando, em O Menino no Espelho, salvou de ser servida ao molho pardo no almoço de domingo da família. Dentro do prédio, pequenas instalações remetem à obra e ao garoto, que lia livros andando pelas ruas da capital mineira, "trombando" nos postes. "Volta e meia chegava com um galo na testa, porque ia lendo pelo caminho e dava com a cabeça num poste. Em Belo Horizonte, havia muito poste na rua", recordou o escritor na crônica Iniciação. Até mesmo o menino que sonhava ser piloto de avião e construiu no quintal de casa sua própria aeronave, com carrinho de pedal e pás de ventilador, está lá. Quem passeia pelos corredores do mercado pode acompanhar a "linha do tempo" que reconta a trajetória do belo-horizontino e deparar com as estátuas dos "Quatro Cavaleiros do Apocalipse" (as esculturas de Sabino, Otto, Pellegrino e Paulo Mendes Campos de lá são diferentes das que estão na entrada da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, na Praça da Liberdade).
. Quem for ao memorial também terá contato com uma faceta pouco conhecida dele: a do Sabino que esteve atrás das câmeras. Em parceria com o diretor David Neves, o mineiro fundou, em 1972, a produtora que ganhou o sugestivo nome de Bem-Te-Vi. Numa TV, instalada na estante, são exibidos os 10 curtas que a dupla produziu sobre escritores brasileiros. São pequenos documentários de 10 minutos, entre eles preciosidades como O Fazendeiro do Ar, em que Carlos Drummond de Andrade, sempre introspectivo, surpreende e aparece brincando de se esconder atrás dos pilotis do Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, e Um Contador de Histórias, em que o escritor gaúcho Erico Veríssimo faz mágicas com sotaque paraguaio e imita um samurai em ritual de haraquiri diante dos netos. "No memorial, não tem somente o Fernando Sabino escritor. Tem também o cineasta e o editor, que teve uma relação singular com o mundo literário (com o também escritor Rubem Braga, ele fundou as editoras do Autor, de 1960 a 1966, e Sabiá, de 1967 a 1972). O público vai conhecer um lado do Fernando Sabino que poucos conhecem", destaca Bernardo.
. . Foi Pedro, irmão de Bernardo, que encontrou as 26 cartas originais em uma pasta comum, em Juiz de Fora (apenas uma é datilografada, as outras são escritas à mão). No Mercado de Origem, estão expostos fac-símiles de oito. As demais estão em processo de conservação preventiva e documentação, trabalho que deve ser finalizado nos próximos meses, segundo a museóloga Polianna Dias. Quem for ao memorial, poderá levar uma versão digital das cartas para casa: basta apontar o celular para um QR Code.
Bernardo revela que foi aprovado em São Paulo um projeto para transformar a troca de cartas entre Sabino e Mário de Andrade em um musical, com direção do maestro mineiro Wagner Tiso e participação da cantora Verônica Sabino, também filha do escritor mineiro. E, recentemente, foi encontrada a escrivaninha onde Sabino escreveu O Encontro Marcado, e Bernardo pretende incorporá-la ao memorial.
. Presidente da Fundação Doimo e diretor do Mercado de Origem, Bernard Martins afirma que a pretensão é fazer do local um dos grandes centros culturais de Belo Horizonte. "Nada melhor do que trazer aquele que é talvez o maior escritor de Belo Horizonte e um dos maiores do Brasil. Todo mundo que nasceu em Minas Gerais leu por algum momento Fernando Sabino, seja por dever escolar ou por gosto", ressalta o dirigente.
. Segundo a secretária municipal de Cultura, Eliane Parreiras, "o memorial é um sonho antigo da família de Sabino, e Belo Horizonte tinha essa dívida de ter um espaço dedicado a ele na cidade". De acordo com Bernardo, o projeto do memorial no Mercado de Origem envolve várias ações, entre elas mostras de cinema, workshops, biblioteca e edições do Encontro Marcado com Fernando Sabino, projeto itinerante de incentivo à leitura direcionado a crianças e adolescentes que já visitou 90 cidades e alcançou quase 1 milhão de alunos, das redes pública e privada.
. Com Lélia e Carolina, Circuito ganha "gingado" e BH deixa de ser "pálida"
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Essa ausência de representatividade foi observada por Etiene, idealizadora do projeto, quando, no Rio de Janeiro, deparou com a estátua de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal. "Vi que era uma mulher negra e aquilo me encantou. Fiquei me perguntando por que Belo Horizonte só tinha estátuas de pessoas brancas, a maior parte de homens, se nós, negros e mulheres de todas as cores, somos a maioria?", questionou a jornalista.
. Etiene então, decidiu interromper esse apagamento e iniciou uma pesquisa minuciosa para decidir quem seriam as primeiras homenageadas. Chegou aos nomes de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus, reconhecidas internacionalmente, mas ainda pouco conhecidas (principalmente Lélia) no estado onde nasceram.
. Para viabilizar financeiramente o projeto, contou com o apoio de outra integrante do Movimento de Mulheres Negras, Jozeli Rosa, da deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL/MG), que destinou R$ 424 mil em emendas parlamentares, e da Secretaria Municipal de Cultura. "O legislativo não pode colocar as estátuas nas ruas, tem de ser o executivo. Jozeli e Bella procuraram a secretaria para falar da proposta e eles compreenderam que ela dialogava com o Circuito Literário. Foi um belo encontro", define a jornalista. De acordo com Eliane Parreiras, a prefeitura já tinha como compromisso que as próximas homenageadas do projeto seriam mulheres e negras. "Tivemos a felicidade de, a partir da concepção da Etiene Martins e Jozeli (Rosa), junto com o mandato da Bella (Gonçalves), receber essa proposta", destaca. "As estátuas de Lélia e Carolina são a versão da história da população negra de Belo Horizonte. No dia 30 de junho de 2024 (data da inauguração), esse artefato que chamamos de estátua e ornamenta a cidade, ganhou um gingado, uma sonoridade diferenciada. Nossa cidade deixou de ser pálida e se tornou minimamente colorida", afirma Etiene.
. Uma intelectual gigante
Autora de dois livros, além de inúmeros ensaios acadêmicos e artigos, Lélia foi pioneira em relacionar gênero, raça e classe, antes mesmo do conceito de interseccionalidade ser consolidado pela jurista negra Kimberlé Crenshaw, em 1989, nos Estados Unidos. Num país que vivia sob o regime militar na década de 1970, ela desconstruiu o mito da democracia racial, apropriado pela ditadura para reforçar que no Brasil não existia racismo. Combativa, a antropóloga criticou aqueles que pouco fizeram para mudar isso, fossem eles pessoas brancas ou negras.
. Ela também enaltecia aqueles que denunciavam a discriminação racial, como o apresentador Chacrinha (1917-1988). Numa entrevista à jornalista Cidinha Campos, o Velho Guerreiro declarou que nas emissoras em que trabalhou era proibido as câmeras focalizarem diretamente o auditório, para que os negros não fossem mostrados; só podiam ser focalizados de passagem ou de costas. Para falar desse depoimento em que Chacrinha "pôs os pingos nos is ou o preto no branco", escreveu uma carta elogiosa: Alô, Alô, Velho Guerreiro, Aquele Abraço.
. Para Rubens Rufino, filho de Lélia Gonzalez, a mãe agora volta para sempre à cidade onde nasceu. "É icônico aquele local, aquela árvore abraçando e protegendo Lélia e Carolina", diz. "Minha mãe saiu de Belo Horizonte muito cedo. Mas tinha lembranças da cidade e da casa onde morou. Contava que, ainda criança, gostava de ficar debaixo da mesa para ler. Com 5 anos, já lia. Era flamenguista, mas tinha como segunda paixão o Atlético Mineiro. Quando o Galo jogava, se não era contra o Flamengo, ela torcia e vibrava muito. Ficava muito emocionada", recorda o economista, que dirige o Instituto Memorial Lélia Gonzalez.
. A antropóloga dominava o inglês, francês e espanhol, teve uma trajetória gigante e provavelmente foi a intelectual negra brasileira que mais circulou internacionalmente no seu tempo. Ela cunhou termos como "amefricanidade" e "pretuguês", este para se referir à influência que os idiomas de origem africana têm no português falado no Brasil, e que é objeto de estudo de pesquisadores, intelectuais e movimentos sociais. No entanto, sempre foi vista mais como ativista do que propriamente como intelectual. E Rubens constata: "Minha filha é formada em história, e na faculdade ela nunca viu um texto da avó", aponta.
. Lélia Gonzalez faleceu em 10 de julho de 1994, vítima de infarto, dois meses depois de ter sido eleita chefe do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, um cargo inédito para uma mulher negra. Este ano marca seus 90 anos de nascimento e está previsto o lançamento de um livro de textos inéditos da antropóloga.
. Carolina Maria, conhecida no mundo, nem tanto em seu país
A estátua de Lélia no Parque Municipal é a primeira da antropóloga no Brasil. Já a de Carolina Maria de Jesus é a segunda: a primeira está no bairro de Parelheiros, em São Paulo, onde a escritora comprou um sítio e morou com os três filhos nos últimos oito anos de vida. Filha de Carolina, a professora Vera Eunice de Jesus lembra que a estátua que fica na capital paulista provocou controvérsia por exibir a escritora descalça. "Os professores e historiadores criticaram porque disseram que o sapato é o marco do empoderamento do negro (na época da escravidão, negros escravizados eram proibidos de usar sapatos e praticar o ato se tornou um símbolo, status de liberdade)." Com a estátua e a polêmica instaladas em São Paulo, Vera Eunice confessa que na inauguração da escultura da mãe, em Belo Horizonte, a primeira coisa que reparou foram os pés.
. "Olhei para os sapatos. Estava perfeita."
Carolina teve apenas dois anos de estudo formal. Ajudada pela patroa da mãe, Maria Leite de Barros, frequentou o Colégio Allan Kardec, de Sacramento (a primeira escola espírita do Brasil). Na cidade, há lembranças de viagens, fotos, recortes de jornais, anotações e cadernos com inéditos. Segundo a professora, esse material está guardado dentro de uma caixa ("uma espécie de sapateira") no prédio que hoje é o Arquivo Público Municipal.
. Ela comenta que adorou ver a mãe eternizada no Parque Municipal ao lado de Lélia Gonzalez. "Minha mãe sempre foi e ainda é muito criticada pela escrita dela. Ela não escreveu na norma culta do português, que, aliás, ela falava muito bem. Escrevia palavras cultas, mas o pessoal só pensa na gramática." Segundo Vera Eunice, quando a Companhia das Letras relançou os dois volumes de Casa de Alvenaria (Osasco e Santana), a opção dela e das integrantes do conselho editorial, entre elas a escritora mineira Conceição Evaristo, foi não modificar nada. "Optamos por publicar do jeito que ela escrevia, e fomos muito criticadas. Conceição Evaristo fala que minha mãe escreve o mineirês (um estilo capturado pelo sotaque mineiro e por termos muito usados em Minas Gerais como ‘minino’, ‘ritira’). Já Lélia diz que a literatura de Carolina é o pretuguês", aponta Vera Eunice.
. Em dezembro de 2023, mais um título inédito de Carolina chegou às livrarias: foi lançado O Escravo, romance que ela escreveu na década de 1950. A Companhia das Letras tem o projeto de lançar romances, poesias, músicas, teatro e narrativas curtas da escritora, a partir dos cadernos originais espalhados pelo país. Vera Eunice revela ainda o objetivo da construção do Memorial Carolina Maria de Jesus em Sacramento, com conversas em andamento com o Ministério da Cultura.
. Carolina Maria de Jesus encanta Etiene Martins pela forma como ela denuncia a maldade humana: "Carolina catava reciclável e comida no lixo para dar para os filhos. Tem uma parte do livro Quarto de Despejo em que ela vê um grupo de pessoas descarregando tomates de um caminhão e alguns caem no chão. Ela tenta pegar e o dono a repreende com o olhar. Ela recua e fica parada, esperando. Quando o caminhão sai, ele passa por cima e amassa todos os tomates. Aqui, ela faz uma reflexão sobre a mesquinharia humana. Carolina dizia que a favela não era lugar para morar, que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Ela falava de sua dor numa perspectiva pessoal que também é coletiva. Já a Lélia conseguiu coletivizar isso através da academia", define Etiene.
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