Estado de Minas CULTURA

BH ganha novos espaços dedicados a grandes escritores

A capital mineira é ponto de partida ou rito de passagem na trajetória de nomes históricos da literatura brasileira


postado em 07/04/2025 00:14 / atualizado em 07/04/2025 00:14

Bernardo Sabino, filho do escritor belo-horizontino Fernando Sabino:
Bernardo Sabino, filho do escritor belo-horizontino Fernando Sabino: "No memorial, não tem somente o Fernando Sabino escritor. Tem também o cineasta e o editor (...). O público vai conhecer um lado dele que poucos conhecem" (foto: Arquivo pessoal)
Fernando Sabino (1923-2004) dizia que a Praça da Liberdade era sua "segunda casa". A residência onde nasceu e viveu infância e adolescência, na rua Gonçalves Dias, 1.458, foi das primeiras a ser construída no entorno do local (onde hoje funciona a Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais). Na juventude, atravessou-a  inúmeras vezes para nadar no Minas Tênis, clube pela qual foi campeão sul-americano nos 400 m nado costas (a prova foi extinta e o recorde permanece com ele até hoje). Com Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, encerrou as noitadas "puxando angústia" num daqueles bancos. Até mesmo a lua de mel de Sabino foi lá: em 1944, após se casar com Helena, filha do então governador Benedito Valadares, passou a noite de núpcias no Palácio da Liberdade. "Tenho um áudio do meu pai falando que a Praça da Liberdade era o seu quintal. Acho um absurdo fazerem o Circuito (Cultural) e não fazerem nada dele. Tem só umas estatuazinhas. Em Itabira, tem a Casa de Drummond; em Porto Alegre, de Mário Quintana; e em Salvador, de Jorge Amado. Belo Horizonte tem uma riqueza literária, mas não tem um museu", aponta Bernardo Sabino, filho do escritor e presidente do Instituto Fernando Sabino.

Um museu dedicado aos seus grandes escritores, a cidade ainda não tem. Mas um passo importante para corrigir essa lacuna foi dado recentemente com a abertura do Memorial Fernando Sabino. Iniciativa do Instituto Fernando Sabino, em parceria com o Mercado de Origem e a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, o espaço é uma experiência imersiva no universo do escritor, jornalista, cronista e contista que fez da cidade cenário de sua literatura. No memorial, até a sala do apartamento de Sabino no Rio de Janeiro é reproduzida (os sofás são réplicas idênticas). Na estante, livros que ele presenteou ou recebeu dos amigos (um deles tem a dedicatória de Manuel Bandeira). Há raridades, como as primeiras edições de O Homem Nu, de Deixa o Alfredo Falar e até obras encontradas hoje só em sebos. No centro, uma mesa com uma das várias máquinas de escrever que teve.

Na entrada do Mercado de Origem, quem "recebe" o público é a galinha Fernanda, aquela que o menino Fernando, em O Menino no Espelho, salvou de ser servida ao molho pardo no almoço de domingo da família. Dentro do prédio, pequenas instalações remetem à obra e ao garoto, que lia livros andando pelas ruas da capital mineira, "trombando" nos postes. "Volta e meia chegava com um galo na testa, porque ia lendo pelo caminho e dava com a cabeça num poste. Em Belo Horizonte, havia muito poste na rua", recordou o escritor na crônica Iniciação. Até mesmo o menino que sonhava ser piloto de avião e construiu no quintal de casa sua própria aeronave, com carrinho de pedal e pás de ventilador, está lá. Quem passeia pelos corredores do mercado pode acompanhar a "linha do tempo" que reconta a trajetória do belo-horizontino e deparar com as estátuas dos "Quatro Cavaleiros do Apocalipse" (as esculturas de Sabino, Otto, Pellegrino e Paulo Mendes Campos de lá são diferentes das que estão na entrada da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais, na Praça da Liberdade).

Quem for ao memorial também terá contato com uma faceta pouco conhecida dele: a do Sabino que esteve atrás das câmeras. Em parceria com o diretor David Neves, o mineiro fundou, em 1972, a produtora que ganhou o sugestivo nome de Bem-Te-Vi. Numa TV, instalada na estante, são exibidos os 10 curtas que a dupla produziu sobre escritores brasileiros. São pequenos documentários de 10 minutos, entre eles preciosidades como O Fazendeiro do Ar, em que Carlos Drummond de Andrade, sempre introspectivo, surpreende e aparece brincando de se esconder atrás dos pilotis do Palácio Capanema, no Rio de Janeiro, e Um Contador de Histórias, em que o escritor gaúcho Erico Veríssimo faz mágicas com sotaque paraguaio e imita um samurai em ritual de haraquiri diante dos netos. "No memorial, não tem somente o Fernando Sabino escritor. Tem também o cineasta e o editor, que teve uma relação singular com o mundo literário (com o também escritor Rubem Braga, ele fundou as editoras do Autor, de 1960 a 1966, e Sabiá, de 1967 a 1972). O público vai conhecer um lado do Fernando Sabino que poucos conhecem", destaca Bernardo.

Entre as joias do memorial estão 10 curtas que Sabino produziu com o diretor David Neves e que trazem, entre outras coisas, imagens raras dos escritores Carlos Drummond de Andrade e Erico Veríssimo(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Entre as joias do memorial estão 10 curtas que Sabino produziu com o diretor David Neves e que trazem, entre outras coisas, imagens raras dos escritores Carlos Drummond de Andrade e Erico Veríssimo (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Para os amantes da literatura, a grande "joia" do acervo são as cartas que Sabino trocou com Mário de Andrade entre os anos de 1942 e 1945 (ano da morte do paulistano). O diálogo epistolar teve início quando o mineiro, então com 18 anos e ainda um autor desconhecido, enviou um exemplar de seu primeiro livro, Os Grilos Não Cantam Mais (1941) para o "papa do modernismo". "Foram três anos de uma correspondência intensa", define Bernardo sobre as trocas com o autor de Macunaíma.

Foi Pedro, irmão de Bernardo, que encontrou as 26 cartas originais em uma pasta comum, em Juiz de Fora (apenas uma é datilografada, as outras são escritas à mão). No Mercado de Origem, estão expostos fac-símiles de oito. As demais estão em processo de conservação preventiva e documentação, trabalho que deve ser finalizado nos próximos meses, segundo a museóloga Polianna Dias. Quem for ao memorial, poderá levar uma versão digital das cartas para casa: basta apontar o celular para um QR Code.

Bernardo revela que foi aprovado em São Paulo um projeto para transformar a troca de cartas entre Sabino e Mário de Andrade em um musical, com direção do maestro mineiro Wagner Tiso e participação da cantora Verônica Sabino, também filha do escritor mineiro. E, recentemente, foi encontrada a escrivaninha onde Sabino escreveu O Encontro Marcado, e Bernardo pretende incorporá-la ao memorial.

Presidente da Fundação Doimo e diretor do Mercado de Origem, Bernard Martins afirma que a pretensão é fazer do local um dos grandes centros culturais de Belo Horizonte. "Nada melhor do que trazer aquele que é talvez o maior escritor de Belo Horizonte e um dos maiores do Brasil. Todo mundo que nasceu em Minas Gerais leu por algum momento Fernando Sabino, seja por dever escolar ou por gosto", ressalta o dirigente.

Segundo a secretária municipal de Cultura, Eliane Parreiras, "o memorial é um sonho antigo da família de Sabino, e Belo Horizonte tinha essa dívida de ter um espaço dedicado a ele na cidade". De acordo com Bernardo, o projeto do memorial no Mercado de Origem envolve várias ações, entre elas mostras de cinema, workshops, biblioteca e edições do Encontro Marcado com Fernando Sabino, projeto itinerante de incentivo à leitura direcionado a crianças e adolescentes que já visitou 90 cidades e alcançou quase 1 milhão de alunos, das redes pública e privada.

Com Lélia e Carolina, Circuito ganha "gingado" e BH deixa de ser "pálida"


Estátuas da escritora Carolina Maria de Jesus e da antropóloga e filósofa Lélia Gonzalez, inauguradas em 2024(foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Estátuas da escritora Carolina Maria de Jesus e da antropóloga e filósofa Lélia Gonzalez, inauguradas em 2024 (foto: Pádua de Carvalho/Encontro)
Tarde de sexta-feira, 10 de janeiro, Parque Municipal Américo Renné Giannetti, centro de Belo Horizonte. Um menino corre em direção às duas estátuas posicionadas diante do Teatro Francisco Nunes e aponta para uma delas: "Mãe, olha lá a Maria Carolina!" Mesmo invertendo os primeiros nomes, ele não esconde a alegria ao ver a escultura da autora da obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, livro lançado na década de 1960 que se tornou um marco da literatura brasileira e um best-seller mundial. Estar em um lugar lugar seguro e, principalmente, que faz parte da infância dos belo-horizontinos foram determinantes para que a jornalista e mestre em relações étnico-raciais Etiene Martins escolhesse o local como cenário da homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e à antropóloga e filósofa Lélia Gonzalez (1935-1994).

Ter as duas no espaço urbano da cidade é histórico. São as primeiras estátuas de pessoas negras não só no Circuito Literário de Belo Horizonte, mas na cidade. Segundo o Inventário dos Monumentos, produzido pela Empresa Municipal de Turismo (Belotur), a capital mineira tinha cerca de 131 monumentos em 2008, mas nenhum dedicado a uma pessoa negra. Isso só mudou em 2023, quando Anita Santos, uma das fundadoras do Movimento Nacional de População em Situação de Rua, ganhou um busto no Parque Municipal. Mas é um busto, não uma estátua.

Essa ausência de representatividade foi observada por Etiene, idealizadora do projeto, quando, no Rio de Janeiro, deparou com a estátua de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal. "Vi que era uma mulher negra e aquilo me encantou. Fiquei me perguntando por que Belo Horizonte só tinha estátuas de pessoas brancas, a maior parte de homens, se nós, negros e mulheres de todas as cores, somos a maioria?", questionou a jornalista.

Etiene então, decidiu interromper esse apagamento e iniciou uma pesquisa minuciosa para decidir quem seriam as primeiras homenageadas. Chegou aos nomes de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus, reconhecidas internacionalmente, mas ainda pouco conhecidas (principalmente Lélia) no estado onde nasceram.

Para viabilizar financeiramente o projeto, contou com o apoio de outra integrante do Movimento de Mulheres Negras, Jozeli Rosa, da deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL/MG), que destinou R$ 424 mil em emendas parlamentares, e da Secretaria Municipal de Cultura. "O legislativo não pode colocar as estátuas nas ruas, tem de ser o executivo. Jozeli e Bella procuraram a secretaria para falar da proposta e eles compreenderam que ela dialogava com o Circuito Literário. Foi um belo encontro", define a jornalista. De acordo com Eliane Parreiras, a prefeitura já tinha como compromisso que as próximas homenageadas do projeto seriam mulheres e negras. "Tivemos a felicidade de, a partir da concepção da Etiene Martins e Jozeli (Rosa), junto com o mandato da Bella (Gonçalves), receber essa proposta", destaca. "As estátuas de Lélia e Carolina são a versão da história da população negra de Belo Horizonte. No dia 30 de junho de 2024 (data da inauguração), esse artefato que chamamos de estátua e ornamenta a cidade, ganhou um gingado, uma sonoridade diferenciada. Nossa cidade deixou de ser pálida e se tornou minimamente colorida", afirma Etiene.

Uma intelectual gigante


Lélia Gonzalez foi exaltada pela intelectual estadunidense Angela Davis em passagem ao Brasil:
Lélia Gonzalez foi exaltada pela intelectual estadunidense Angela Davis em passagem ao Brasil: "Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo" (foto: Divulgação)
Lélia Gonzalez nasceu dia 1º de fevereiro de 1935 em Belo Horizonte, filha de Acácio Joaquim de Almeida – homem negro, ferroviário, nascido após a Lei do Ventre Livre –, e de Urcinda Seraphina de Almeida – de ascendência indígena, analfabeta e empregada doméstica. O sobrenome Gonzalez herdou do primeiro marido, filho de pais espanhóis. Foi a penúltima de 18 filhos. Aos 7 anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro (o irmão Jaime de Almeida tinha se destacado no Atlético Mineiro e foi convidado a jogar pelo Flamengo, levando toda a família junto). Na capital fluminense, concluiu o ensino médio no tradicional Colégio Pedro 2º, escola pública muito frequentada pela elite de um Rio de Janeiro ainda capital federal. Posteriormente,  formou-se em história, geografia e filosofia na então Universidade do Estado do Guanabara (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Autora de dois livros, além de inúmeros ensaios acadêmicos e artigos, Lélia foi pioneira em relacionar gênero, raça e classe, antes mesmo do conceito de interseccionalidade ser consolidado pela jurista negra Kimberlé Crenshaw, em 1989, nos Estados Unidos. Num país que vivia sob o regime militar na década de 1970, ela desconstruiu o mito da democracia racial, apropriado pela ditadura para reforçar que no Brasil não existia racismo. Combativa, a antropóloga criticou aqueles que pouco fizeram para mudar isso, fossem eles pessoas brancas ou negras.

Ela também enaltecia aqueles que denunciavam a discriminação racial, como o apresentador Chacrinha (1917-1988). Numa entrevista à jornalista Cidinha Campos, o Velho Guerreiro declarou que nas emissoras em que trabalhou era proibido as câmeras focalizarem diretamente o auditório, para que os negros não fossem mostrados; só podiam ser focalizados de passagem ou de costas. Para falar desse depoimento em que Chacrinha "pôs os pingos nos is ou o preto no branco", escreveu uma carta elogiosa: Alô, Alô, Velho Guerreiro, Aquele Abraço.

Para Rubens Rufino, filho de Lélia Gonzalez, a mãe agora volta para sempre à cidade onde nasceu. "É icônico aquele local, aquela árvore abraçando e protegendo Lélia e Carolina", diz. "Minha mãe saiu de Belo Horizonte muito cedo. Mas tinha lembranças da cidade e da casa onde morou. Contava que, ainda criança, gostava de ficar debaixo da mesa para ler. Com 5 anos, já lia. Era flamenguista, mas tinha como segunda paixão o Atlético Mineiro. Quando o Galo jogava, se não era contra o Flamengo, ela torcia e vibrava muito. Ficava muito emocionada", recorda o economista, que dirige o Instituto Memorial Lélia Gonzalez.

A antropóloga dominava o inglês, francês e espanhol, teve uma trajetória gigante e provavelmente foi a intelectual negra brasileira que mais circulou internacionalmente no seu tempo. Ela cunhou termos como "amefricanidade" e "pretuguês", este para se referir à influência que os idiomas de origem africana têm no português falado no Brasil, e que é objeto de estudo de pesquisadores, intelectuais e movimentos sociais. No entanto, sempre foi vista mais como ativista do que propriamente como intelectual. E Rubens constata: "Minha filha é formada em história, e na faculdade ela nunca viu um texto da avó", aponta.
Lélia Gonzalez faleceu em 10 de julho de 1994, vítima de infarto, dois meses depois de ter sido eleita chefe do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, um cargo inédito para uma mulher negra. Este ano marca seus 90 anos de nascimento e está previsto o lançamento de um livro de textos inéditos da antropóloga.

Carolina Maria, conhecida no mundo, nem tanto em seu país


A estátua de Lélia no Parque Municipal é a primeira da antropóloga no Brasil. Já a de Carolina Maria de Jesus é a segunda: a primeira está no bairro de Parelheiros, em São Paulo, onde a escritora comprou um sítio e morou com os três filhos nos últimos oito anos de vida. Filha de Carolina, a professora Vera Eunice de Jesus lembra que a estátua que fica na capital paulista provocou controvérsia por exibir a escritora descalça. "Os professores e historiadores criticaram porque disseram que o sapato é o marco do empoderamento do negro (na época da escravidão, negros escravizados eram proibidos de usar sapatos e praticar o ato se tornou um símbolo, status de liberdade)." Com a estátua e a polêmica instaladas em São Paulo, Vera Eunice confessa que na inauguração da escultura da mãe, em Belo Horizonte, a primeira coisa que reparou foram os pés.

"Olhei para os sapatos. Estava perfeita."


Capa do livro 'Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros', organizado por Hélio Menezes e Raquel Barreto: obra traz catálogo que documenta exposição realizada no Instituto Moreira Salles, em SP, em 2022(foto: Divulgação)
Capa do livro 'Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros', organizado por Hélio Menezes e Raquel Barreto: obra traz catálogo que documenta exposição realizada no Instituto Moreira Salles, em SP, em 2022 (foto: Divulgação)
Há 25 anos, Vera tenta organizar o acervo e recuperar os manuscritos da mãe (muitos deles contêm textos inéditos), espalhados por Sacramento (MG), cidade natal da escritora, São Paulo e Curitiba. Segundo ela, há fotos e manuscritos guardados na casa de Audálio Dantas, o jornalista que descobriu a autora de Quarto de Despejo. O livro conta, de forma contundente, o cotidiano na extinta favela do Canindé, em São Paulo, a partir do olhar de Carolina Maria, uma catadora de papel. A obra, traduzida em mais de 13 idiomas, teve mais de um milhão de exemplares vendidos fora do país. "Antes de morrer, minha mãe deixou uma carta. Nela, fez alguns pedidos, um deles que eu não deixasse a memória dela morrer. Para escrever, ela usava cadernos com cinco folhas que achava no lixo. Se a pessoa fosse lá em casa e pedisse um desses cadernos, ela dava, e a pessoa não devolvia. Não quero que esse material fique guardado em gavetas, guarda-roupa ou na minha casa", determina ela, que quer reuni-los e expô-los em alguma instituição para o público.

Carolina teve apenas dois anos de estudo formal. Ajudada pela patroa da mãe, Maria Leite de Barros, frequentou o Colégio Allan Kardec, de Sacramento (a primeira escola espírita do Brasil). Na cidade, há lembranças de viagens, fotos, recortes de jornais, anotações e cadernos com inéditos. Segundo a professora, esse material está guardado dentro de uma caixa ("uma espécie de sapateira") no prédio que hoje é o Arquivo Público Municipal.

Ela comenta que adorou ver a mãe eternizada no Parque Municipal ao lado de Lélia Gonzalez. "Minha mãe sempre foi e ainda é muito criticada pela escrita dela. Ela não escreveu na norma culta do português, que, aliás, ela falava muito bem. Escrevia palavras cultas, mas o pessoal só pensa na gramática." Segundo Vera Eunice, quando a Companhia das Letras relançou os dois volumes de Casa de Alvenaria (Osasco e Santana), a opção dela e das integrantes do conselho editorial, entre elas a escritora mineira Conceição Evaristo, foi não modificar nada. "Optamos por publicar do jeito que ela escrevia, e fomos muito criticadas. Conceição Evaristo fala que minha mãe escreve o mineirês (um estilo capturado pelo sotaque mineiro e por termos muito usados em Minas Gerais como ‘minino’, ‘ritira’). Já Lélia diz que a literatura de Carolina é o pretuguês", aponta Vera Eunice.

Em dezembro de 2023, mais um título inédito de Carolina chegou às livrarias: foi lançado O Escravo, romance que ela escreveu na década de 1950. A Companhia das Letras tem o projeto de lançar romances, poesias, músicas, teatro e narrativas curtas da escritora, a partir dos cadernos originais espalhados pelo país. Vera Eunice revela ainda o objetivo da construção do Memorial Carolina Maria de Jesus em Sacramento, com conversas em andamento com o Ministério da Cultura.

Carolina Maria de Jesus encanta Etiene Martins pela forma como ela denuncia a maldade humana: "Carolina catava reciclável e comida no lixo para dar para os filhos. Tem uma parte do livro Quarto de Despejo em que ela vê um grupo de pessoas descarregando tomates de um caminhão e alguns caem no chão. Ela tenta pegar e o dono a repreende com o olhar. Ela recua e fica parada, esperando. Quando o caminhão sai, ele passa por cima e amassa todos os tomates. Aqui, ela faz uma reflexão sobre a mesquinharia humana. Carolina dizia que a favela não era lugar para morar, que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Ela falava de sua dor numa perspectiva pessoal que também é coletiva. Já a Lélia conseguiu coletivizar isso através da academia", define Etiene.

Os comentários não representam a opinião da revista e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação